Por que engenheiros viram motoristas de Uber no Brasil?


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E por que isso é um dos maiores fracassos da nossa política econômica


Olá!

Você já conversou com um motorista de Uber formado em engenharia?

Se a resposta é sim, você testemunhou um dos maiores fracassos da política econômica brasileira: a total desconexão entre educação e estrutura produtiva.

Investimos bilhões em universidades, formamos milhares de profissionais qualificados, mas nossa economia não consegue absorvê-los em atividades condizentes com sua formação.

O resultado? Talentos desperdiçados, fuga de cérebros e uma economia presa em atividades de baixa complexidade. É como educar pilotos de avião para uma economia que só tem bicicletas.

Hoje vou mostrar os 5 sinais mais evidentes de que nossa educação está completamente desconectada da produção—e por que isso mata qualquer chance de desenvolvimento sustentável.

Vamos analisar cada sinal de perto.

1. A realidade cruel: formamos engenheiros para dirigir Uber

O fenômeno do "engenheiro motorista de Uber" não é piada—é sintoma de uma doença estrutural grave. O gráfico abaixo revela a dimensão do problema: enquanto a China possui uma indústria de transformação de mais de US$ 5 trilhões, o Brasil patina com apenas US$ 223 bilhões—menos que a Indonésia.

Valor adicionado pela indústria ao PIB (2020) - A China lidera com US$ 5,26 trilhões, seguida por Japão (US$ 1,3 tri) e Alemanha (US$ 904 bi). O Brasil aparece na lanterna com apenas US$ 223 bilhões, abaixo até da Indonésia (US$ 391 bi). Dados mostram como nossa base industrial é insignificante comparada às potências mundiais.

Como mostram os dados do projeto de desindustrialização brasileira, nossa indústria que chegou a representar quase 25% do PIB despencou para apenas 10% em 2018. A trajetória é devastadora: saímos de um pico de 27,3% em 1985 para meros 11,3% em 2018.

Participação da indústria de transformação no PIB brasileiro - O gráfico revela a trajetória de ascensão e queda da indústria nacional: crescimento até o pico de 27,3% em 1985, seguido de declínio acentuado até 11,3% em 2018. Uma das maiores desindustrializações da história mundial em termos relativos.

Países como Coreia do Sul, Japão e Alemanha mantêm ainda hoje setor industrial na casa de 25% do PIB. O Brasil se desindustrializou antes de ficar rico, destruindo justamente os empregos que demandam alta qualificação técnica. Quando eliminamos a demanda por conhecimento especializado, mesmo os melhores cérebros acabam em atividades que qualquer pessoa pode exercer.

A manchete do Estado de São Paulo captura perfeitamente essa realidade: aplicativos como Uber viraram o "maior empregador do país" durante a crise econômica. Um engenheiro dirigindo Uber ganha exatamente o mesmo que um motorista analfabeto—é o desperdício total do capital humano.

Capa do jornal O Estado de S. Paulo destacando como aplicativos de entrega se tornaram o "maior empregador do país" durante a crise econômica. Simboliza a regressão da economia brasileira para atividades de baixa complexidade e produtividade.

2. Investimentos altos, retornos baixos: o paradoxo educacional brasileiro

Aqui está o paradoxo mais cruel: o Brasil investe somas vultosas em educação, nossas universidades estão bem avaliadas internacionalmente, mas o retorno desses investimentos é pífio. A pesquisa acadêmica confirma nossa estagnação econômica desde 1950, mostrando como perdemos décadas de oportunidades de desenvolvimento.

Artigo científico publicado no Journal Structural Change and Economic Dynamics documenta décadas de estagnação econômica brasileira (1950-2011). Pesquisa acadêmica confirma a perda de dinamismo produtivo e baixo crescimento da produtividade no país.

Os dados históricos revelam que nossa participação industrial no PIB e no emprego seguem uma trajetória de declínio consistente desde os anos 1980. Enquanto outros países emergentes avançaram, o Brasil regrediu.

Evolução histórica da participação da manufatura no PIB real e no emprego brasileiro - Ambas as curvas mostram tendência de queda desde os anos 1980, com a participação no PIB caindo de 23% para 17% e no emprego de 14% para 12%. Evidência empírica da desindustrialização prematura.
Índice de câmbio real efetivo e taxa de juros SELIC real - O gráfico mostra como a combinação de câmbio valorizado e juros elevados (média de 9,36% entre 1999-2009) criou ambiente hostil à indústria nacional, contribuindo para a desindustrialização.

Segundo dados do Fórum Econômico Mundial, o país despencou da 45ª para a 70ª posição no ranking de "fuga de cérebros" em apenas um ano. O problema não está na qualidade da formação—está na incapacidade do setor produtivo brasileiro de oferecer bons empregos para reter nossos melhores talentos. Sem estrutura industrial complexa, viramos uma fábrica de mão de obra qualificada para o mundo.

3. O êxodo dos cérebros: quando estudar é passaporte para sair do país

A fuga de cérebros brasileira não é acidente—é consequência lógica de uma estrutura produtiva limitada. O gráfico de evolução setorial mostra como nossa economia regrediu: a agricultura e mineração dominam, enquanto a manufatura e serviços de alta qualificação estagnam.

Participação setorial no emprego total - Enquanto agricultura/mineração se mantiveram estáveis e serviços de baixa qualificação cresceram, a manufatura estagnou e serviços de alta qualificação permaneceram marginais. Mostra a regressão da estrutura ocupacional brasileira.

Como observou Robert Lucas, diferentemente do que prega a teoria tradicional, é o trabalho qualificado que procura os melhores capitais via migração—não o contrário.

4. Empresas não encontram qualificação, mas qualificados não encontram empresas

Esse é talvez o sinal mais perverso da desconexão: ao mesmo tempo que empresas reclamam da falta de mão de obra qualificada, profissionais formados não conseguem vagas condizentes com sua preparação. O gráfico sobre complexidade econômica posiciona o Brasil em situação intermediária—nem rico nem pobre, mas estagnado.

Posicionamento internacional: manufatura per capita versus complexidade econômica (ECI 2016) - O Brasil ocupa posição intermediária no gráfico, com baixa complexidade econômica e manufatura per capita de apenas US$ 1.200, muito aquém de países desenvolvidos como Alemanha, Suíça e Japão.

O problema não é escassez de talentos—é escassez de empresas com complexidade suficiente para absorvê-los.

Nossa estrutura produtiva focada em commodities e serviços não sofisticados simplesmente não demanda o nível de conhecimento que nossas universidades oferecem. É como ter violinistas de classe mundial numa orquestra que só toca música sertaneja.

Os dados são alarmantes: o Brasil tem quase 4 milhões de trabalhadores com ensino superior sem ocupação adequada. A relação se inverteu em 2014—temos mais gente qualificada do que vagas que demandem essa qualificação.

"Sobram trabalhadores, faltam vagas" - Gráfico do G1 mostra que o Brasil possui quase 4 milhões de trabalhadores com ensino superior sem ocupação adequada. A inversão ocorreu em 2014, quando o número de qualificados (18,33 milhões) superou as ocupações disponíveis (14,51 milhões).

O Brasil forma poucos engenheiros por habitante, investe pouco na educação técnica e sofre com baixa qualidade na educação básica, mas mesmo os profissionais bem formados encontram um mercado de trabalho que não valoriza sua especialização.

5. Estagnação produtiva: presos na economia das padarias e cabeleireiros

O quinto sinal é o mais devastador: nossa estrutura produtiva regrediu para atividades que não exigem nem desenvolvem capital humano complexo. Como mostram os dados econômicos, viramos "a economia das padarias, dos cabeleireiros, das manicures e dos lojistas de shopping"—serviços não escaláveis, sem produtividade, sem desenvolvimento tecnológico.

Profissões como cabeleireiro, manicure e motorista de táxi são essencialmente as mesmas há milênios.

Não há acumulação exponencial de conhecimento nessas atividades, diferentemente da engenharia onde o aprendizado é cumulativo e transformador. O capital humano só se desenvolve em ocupações específicas que demandam especialização crescente.

Quando nossa economia se concentra em atividades simples, desperdiçamos todo o potencial de uma geração educada.

Essa relação entre estrutura produtiva e aproveitamento de capital humano é um dos temas centrais que exploramos em nossos cursos sobre desenvolvimento econômico brasileiro, onde analisamos como diferentes países conseguiram criar demanda por profissionais qualificados através de estratégias industriais coordenadas.

A solução: coordenar política educacional com industrial

A coordenação entre educação e estrutura produtiva não é luxo—é questão de sobrevivência nacional.

Países como Coreia do Sul estruturaram universidades técnicas intimamente conectadas com o setor produtivo. A Alemanha, com seu sistema de formação dual, integra desde cedo educação com prática industrial.

O Brasil precisa criar algo equivalente: educação técnica de excelência, universidades com foco em pesquisa aplicada, programas robustos de estágio em empresas industriais, e política consistente de intercâmbio internacional.

Isso significa formar profissionais não apenas para o mercado local, mas talentos preparados para competir globalmente.

Mais que isso: precisamos de política industrial que crie demanda por esses talentos, desenvolvendo setores de alta complexidade que justifiquem e remunerem adequadamente o investimento em capital humano.

Sem essa coordenação, continuaremos desperdiçando gerações inteiras de brasileiros qualificados.

Abraços!

Paulo Gala


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Segmento: Economia

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