REPORTAGENS ESPECIAIS

 


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Cena do filme “Arara”, de Jesco von Puttmaker, que mostra cenas da formatura da 1º Guarda Rural Indígena. Créditos: Reprodução
    

Ditadura e Cinema: O terror contra indígenas

Um indígena é levado num pau de arara por outros dois. O que está por trás deste vídeo descoberto em 2012? O que foi a Guarda Rural Indígena criada pelo regime militar? Que contam os sobreviventes da época? Documentário GRIN mostra isso e ajuda a refletir sobre as violações de hoje

Durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade em 2012, um novo material veio potencializar o que se sabia sobre a Guarda Rural Indígena. Um pequeno rolo de filme em 16mm foi encontrado no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, por Rodrigo Piquet e levado ao pesquisador e organizador da comissão, Marcelo Zelic. Na película a documentação da formatura dos militares da Guarda Rural Indígena evidencia um espetáculo bizarro de padronização, militarização e ensino de tortura a céu aberto.

A imagem de dois indígenas carregando um terceiro em um “pau de arara”, técnica de tortura clássica do regime militar brasileiro, é a única imagem fotográfica que se tem dessa modalidade de tortura em toda a história da ditadura nacional. O que é possível de se encontrar antes do filme são apenas representações gráficas do aparato, mas não uma imagem real, muito menos em movimento.

O registro de “Arara” é de 1970 e de autoria do diretor Jesco Von Puttmaker, um judeu brasileiro que teve que fugir de um campo de concentração alemão para onde foi levado com seu irmão. No longa-metragem brasileiro de 2020, “A Flecha e a Farda” , o diretor Miguel Antunes Ramos mostra como a câmera de Jesco segue os gestos militares e registra a identificação das fardas por etnia, além dos cabelos compridos dos indígenas fugindo ao padrão militar.


Cena do filme “Arara”, de Jesco von Puttmaker, que mostra cenas da formatura da 1º Guarda Rural Indígena. Créditos: Reprodução

Outro filme produzido com base na obra de Jesco, o curta-metragem GRIN, com direção de Isael e Sueli Maxakali, além do cineasta não-indígena Roney Freitas, retrata, através de depoimentos, como as marcas da GRIN permanecem vivas nos territórios indígenas Maxakali. As feridas deixadas pelo pelotão de Pinheiro vão de um lado ao outro do treino militar, dos que viraram soldados aos que apanhavam deles, da lembrança dos treinos sádicos, às execuções de torturas e mortes cruéis pelo próprio capitão.

Mas além das feridas mal cicatrizadas da ditadura, um evento marcante perpassa a filmagem do média e obriga o espectador a voltar ao tempo presente. Um pouco antes das filmagens, a pajé Daldina Maxakali foi atropelada por um homem em uma moto que lhe negou socorro, deixando que ela morresse na beira da rodovia. O filme prova então como os maus tratos direcionados às comunidades indígenas pela ditadura seguem vivos, além do descaso do poder público, cúmplice ainda de mortes diárias de indígenas em todo o território brasileiro.

“Para nós a ditadura nunca acabou” Sueli Maxacali

O Reformatório Krenak

Além da guarda, outros aparelhos de controle foram instituídos na região do município de Resplendor (MG) durante o regime militar. A cadeia Krenak, chamada eufemisticamente de “reformatório”, era uma casa com alguns cômodos e um cubículo, onde os indígenas “desobedientes” eram trancafiados, muitas vezes por tempo indeterminado. O cubículo, parte mais temida da cadeia, era um minúsculo anexo à casa onde os prisioneiros eram colocados em solitária e onde uma goteira caia incessantemente na testa de quem ia parar lá, em um exercício clássico de tortura.

A cadeia Krenak era usada por membros da GRIN para todo tipo de prisão arbitrária, sendo as desculpas mais comuns: a embriaguez, a vadiagem, a prostituição, a saída do Posto Indígena sem autorização, envolvimento na luta de terra e a “perturbação das autoridades”. Considerada hoje por muitos inclusive como um equivalente de um campo de concentração, a cadeia tinha por objetivo dominar o modo de vida indígena, além de afastá-los de suas terras, deixando-as livres para a espoliação.

Em seu livro “Os Fuzis e as Flechas” Rubens Valente conta como uma comunidade Krenak da região foi expulsa de suas terras por um enxame de “baratinhas” trazidas pelos brancos, e sobre como quando voltaram passaram a ser tratados tal qual os encarcerados do “reformatório” (p.77).

“Os Krenaks se tornaram, em amarga ironia, prisioneiros em sua própria terra”Rubens Valente em “Os Fuzis e as Flechas”

Como se já não bastassem as violentas arbitrariedades cometidas pelos GRIN no exercício de seu poder, a cadeia se tornou uma nova ferramenta de práticas de sadismo. Em2012 descobriu-se que ao menos 100 indígenas passaram pela cadeia e que a maioria não tinha nem documento e nem acusação formalizada. As condenações eram feitas por Pinheiro e seus subordinados de acordo com o seu humor.

É importante lembrar da participação da Vale do Rio Doce nesse processo também. Não é àtoa que diversos profissionais passaram a se referir à ditadura brasileira como “ditadura empresarial-militar”. A mesma mineradora que décadas depois iria contaminar completamente o Watu (como os Krenaks chamam o Rio Doce, a quem consideram seu avô), foi a empresa que emprestou seus trens para o transporte de pessoas para as cadeias indígenas.


“Desde a criação do reformatório, a gente enxergava o rio como algo que nos protegia, que sempre manteve vivo o povo Krenak, tanto pela questão alimentar quanto pela questão espiritual. Hoje a gente tem medo de algo que sempre nos protegeu”Geovani Krenak em reportagem do CIMI por Marina Oliveira

Segundo o capítulo “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) , o general Oscar Geronymo Bandeira de Melo, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1970 e 1974, é indicado como criador do reformatório Krenak. Segundo o documento o general teria sido responsável por manter o local como “instalação prisional pela Funai e local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas”.

Comissão Nacional Indígena da Verdade e Marco Temporal

A recente vitória dos povos Krenak e Guarani Kaiowá perante a justiça, com o reconhecimento de violações ocorridas no período militar contra seus povos, trouxe uma nova esperança aos indígenas que lutam pela proteção de suas comunidades. Pela primeira vez desde a sua criação em 2002, a Comissão da Anistia fez um reconhecimento coletivo de danos causados pela ditadura aos indígenas das duas etnias e fez um pedido de desculpas público a ambas, além de aprovarem recomendações a órgãos públicos de modo a impedir que esse tipo de violações se repitam.

“Queria me ajoelhar perante o senhor. Estou muito emocionada, mas, em nome do Brasil, do Estado brasileiro, quero pedir desculpas. E que o senhor leve esse pedido de desculpas a todo seu povo, em nome da Comissão de Anistia e do Estado brasileiro”, disse, de joelhos, a presidenta da comissão, a advogada Enéa de Stutz e Almeida”. Conforme registrado por Alex Rodrigues para a Agência Brasil.

Mas mesmo assim muitos indígenas continuam insatisfeitos, já que esse reconhecimento foi feito para apenas duas etnias e ainda falta muito o que se investigar sobre os ataques à indígenas feitos pela ditadura militar. Por isso muitos apoiam a criação de uma Comissão Nacional Indígenas da Verdade, já que foram eles também os mais afetados pelo regime.

Paralelo a isso, grupos indígenas pressionam também contra as tentativas de imposição de um marco temporal à ocupação de suas terras e uma Comissão Nacional Indígena da Verdade poderia ajudar diversos povos a provarem que foram obrigados a sair de seus territórios por motivos de perseguição, por exemplo, e contrapor a argumentação simplista de que eles só poderiam ser donos das terras que ocupavam em 1988, quando foi promulgada a constituição.

Tempos históricos e momentos políticos distintos se misturam quando pensamos na questão indígena e poderíamos sem erro dizer que esses povos são perseguidos desde a colonização, mas atualizar o debate segundo as normas de ataque traçadas pela ditadura empresarial-militar nos ajuda a entender o que está em jogo nas empreitadas atuais de tentativa de invasão de terras indígenas e deslegitimação jurídica desses povos sobre suas aldeias. O agressivo projeto de colonização das florestas brasileiras continua vivo e mais do que nunca precisamos de ferramentas para enfrentá-lo.

A Ditadura Nunca Acabou: O Filme GRIN e a Atualização da Violência Contra os Indígenas

O filme “GRIN” é um média-metragem que recupera a história do filme “Arara” de Jesco Von Puttkamer encontrado no antigo Museu do Índio do Rio de Janeiro em 2012, e disseminado por Marcelo Zelic. Além disso, o filme entrevista os sobreviventes do cruel experimento da Guarda Rural Indígena e mostra a atualização das violências sofridas pelos Maxakali.

A seguir, as entrevistas feitas com os três diretores do filme, Sueli e Isael Maxakali, além do cineasta não-indígena Roney Freitas, aprofundam o processo de pesquisa e realização do filme. Para que a oralidade de Sueli e Isael Maxakali não se perdessem, suas entrevistas foram mantidas em áudio, enquanto a de Roney foi transcrita.

É importante lembrar que a gravação das entrevistas sofreu com muitos problemas técnicos, especialmente de conexão com a internet da aldeia de Isael e Sueli, e por isso algumas partes podem parecer soltas na fala dos realizadores. Ainda assim as entrevistas foram mantidas na íntegra para que nada se perca da avaliação dos dois sobre esse importante documento histórico que é o filme “GRIN”.

Ouça:

Entrevista com Isael Maxakali

Entrevista com Sueli Maxakali

Entrevista com Roney Freitas

Juli – Eu queria começar falando sobre o curta-metragem que você fez junto com o Isael e a Sueli Maxacali, o GRIN. Esse filme traz bastante informação sobre a questão indígena na ditadura, que ainda é um assunto bem apagado, né? Não sei se você concorda. Agora nos últimos anos tem se falado mais, principalmente agora em 2024 por conta dos 60 anos do golpe, mas ainda parece apagado, dada a proporção do assunto.

Roney – Tem um outro documentário também que é mais recente, “A Flecha e a Farda” do Miguel Antunes Ramos, que é bem interessante. Ele fez uma dissertação de mestrado, que é também um pouco o processo desse filme, e a gente conversou muito porque, como o GRIN foi um dos primeiros a tratar desse material (o filme “Arara” descoberto em 2012), ele chegou até a utilizar o GRIN como pesquisa mesmo, como referência, e em algum momento ele até pediu o filme para passar para os povos com quem ele estava trabalhando. Se você não viu ainda eu recomendo, porque eu acho que ele complementa a ideia dessas realizações… tem outras também, né? Tem umas que vão falar do Relatório Figueiredo. Porque isso tudo veio junto com a ação da Comissão da Verdade e com as descobertas do falecido Marcelo Zelic e conforme o Zelic foi pesquisando para contribuir ali na pasta da Comissão da Verdade nas questões indígenas, nos crimes acontecidos no campo, ele foi disseminando esse material.

Então eu fui um dos que recebeu o material do filme “Arara”, assim como vários outros cineastas. Em paralelo foram sendo feitas várias coisas, entre elas essa aí que eu comentei. Eu estou comentando disso, porque eu acho interessante que tenham surgido vários, assim como a gente tem a produção de filmes sobre a Shoah, por exemplo, a gente tem muita referência cinematográfica de crimes relacionados ao Holocausto, porque é importante a gente ter essa memória do que a humanidade já fez e do que não pode ser repetido, até mesmo para colocar em perspectiva questões contemporâneas.

E eu acho que a ideia da GRIN e dos acontecimentos relacionados no período específico da ditadura tem que ter essa produção incessante mesmo, seja novos artigos, novos filmes… retomar de novo a questão da GRIN, por exemplo, por outros povos. No caso, ”A Flecha e a Farda” vai tratar dos Xerente e Krahô, se não engano, principalmente esses povos, o GRIN fez seu recorte com os Tikmũ’ũn (Maxakali). Há época da pesquisa do GRIN teve um documentário mais jornalístico, que foi de pesquisa jornalística mesmo, para uma matéria da Pública que acompanhou os Krenak. Então tem todos esses materiais assim, desde esses mais recentes… e acho ótimo que que tenha mais.

Juli – E como é que você chegou nesse assunto? Nesse tema especificamente? Você já pesquisava sobre isso? Alguém te convidou para fazer algo nesse sentido? Como que foi?

Roney – Eu estava ministrando uma oficina de documentário na Biblioteca Roberto Santo e aí tinha uma das pessoas que participou da oficina, que era uma pesquisadora Kariri, a Rosi Araújo, e ela tava muito… ela também é ativista do campo indígena, ela é indígena Kariri, e ela estava muito por dentro do que estava acontecendo. E entre as discussões com todos os alunos ali da oficina, ela tomou a iniciativa de vir direto e falar “olha, acho que precisa ser feito um filme sobre isso aqui”. Ela queria que alguém falasse sobre esse recorte da questão da ditadura e as mortes dentro do campo indígena que estava sendo contabilizado na época. Muito com a ajuda do Marcelo Zelic, que chegou a esse número projetado de mais de 8.000 mortes. A Paula Berbert também coloca na dissertação dela, uma dissertação sobre a Guarda Rural Indígena. Então tem esses dados aí.

A partir dessa provocação da Rosi Araújo, eu vi que era realmente algo que estava no momento de a gente fazer algo e até para saber, para conhecer, porque não sabia nada a respeito. Aí, através da Rosie que eu entrei em contato com o Marcelo Zelic, que estava aqui em São Paulo. E ele falou da história dele, da descoberta no antigo Museu do Índio, que hoje ele foi renomeado, mas no Museu do Índio, ligado à Funai, ele achou o material do Jesco Von Puttkamer e aí ele passou esse material digitalizado, assim como ele passou várias referências de pesquisa, passou o relatório Figueiredo, também digitalizado, e aí a gente viu que era um mar mesmo, muita coisa. A relação entre a ditadura e a questão indígena.

E tinha muito dessa produção do jornalista André Campos da revista Pública, que ele estava fazendo matérias sobre os Krenak, porque também estava muito ligado ao Reformatório Agrícola Krenak, por isso que ele partiu daí. E a relação dos Krenak é fundamental, tanto que recentemente quem teve mais respostas de possível indenização foi esse povo. E também porque acho que mais conseguiu juntar esses materiais, porque não só tinha a questão da guarda sobre eles, mas também a questão do reformatório. Inclusive o nosso filme, o GRIN, ele contribuiu nesse sentido porque o tradutor das entrevistas, o Douglas Campelo, que é um antropólogo, ele trabalhou muito tempo com os Maxakali, e ele percebeu que ajudaria a gente divulgar essas entrevistas traduzidas para as comissões estaduais que estavam acontecendo, e aí somou a ajuda, dentro desse material, em defesa também do que aconteceu com os Krenak.

Mas indo mais cronologicamente. A Rosi Araújo então teve essa ponte. Ela acompanhou esse início mais no campo da pesquisa até a gente fechar. E aí eu acabei tomando mais a frente também por ter a disponibilidade para acompanhar e levar mais a frente esse projeto e fazer mais recortes dentro disso. E aí então, como eu vi que o Krenak era fundamental, era também totalmente relacionado com os Maxakali, que de longa data tem relação com os Krenak, com os Borun. E eu vi que tinha menos coisas sobre os Maxakali ligado à Guarda Rural. Ao mesmo tempo, eu vi, nesse início dos anos 2000, 2010 pra frente, que estava tendo uma potência cinematográfica, uma força de produção dos cineastas Maxakali. Então isso também ajudou a selecionar, a perceber que, como é uma questão, tanto do não-indígena, quanto do indígena, era muito óbvio que tinha que ter uma co-direção indígena. E aí saber que tinha uma produção cinematográfica e tinham cineastas como Isael Maxakali, de larga produção, foi meio que imediato também a escolha de buscar o Isael para apresentar esse material e esse desejo de falar sobre isso, esse projeto.

E aí foi uma sincronicidade, porque ele já estava também querendo falar sobre isso. Porque quando estava todo mundo descobrindo isso e recebendo esses materiais, vendo as notícias, a notícia que saiu na Folha… teve outros antropólogos que foram fazer oitivas na aldeia em que o Isael morava, então isso já estava sendo discutido. E aí quando cheguei com a possibilidade de já fazer por conta de um (edital) Prêmio Estímulo, aí foi essa sincronicidade, que tanto ele quanto a Sueli, tiveram interesse e toparam. E aí o filme se refez no sentido de se atravessar pelo modo Maxakali, na realização dele, então teve várias etapas. Essa foi a etapa da co-direção, que teve interferência na estética também e no recorte final, em como abordar.

Eu trabalhei no campo mais do testemunho da vítima dessa situação. No testemunho do ocorrido, os idosos queriam falar e ainda num momento delicado porque, entre os idosos que queriam falar, o Totó Maxakali, que recentemente, à época do filme, estava em luto por conta da Daldina Maxakali, filha dele que faleceu, então tinha… tinha essa ressonância do luto sobre todos aqueles depoimentos, o que acho que ampliou a sensibilidade de receber essas falas, porque tava exatamente vivendo aquilo. A gente atravessava uma aldeia e outra e eles comentavam que, onde a pessoa morre, na cultura Maxakali, aquele território passa a ser do Maxakali, daquele indivíduo ali que faleceu. E tem que ter uma organização assim, desse ser ali numa transformação em encantado na forma de canto.

Eles falavam que, conforme eles passavam em várias regiões entre uma aldeia e outra, eles ouviam cantos de mortos. E eram todos relatos também então, dessas violências entre fazendas, porque as terras deles estão nessa situação hoje, é muito tempo de contato e estão entre os povos com as menores demarcações de terra e entre fazendas, em conflito com fazendeiros. E é mais uma roupagem, a Guarda Rural Indígena, desse aspecto, que é uma negociação entre fazendeiros também para impedir o nomadismo, porque eles são um povo nômade.

E são situações que até hoje existem, então é uma criança que, por exemplo, vai pescar no rio e corre risco, ou mesmo toma tiro, porque entrou numa propriedade. E a pesca pros Maxakali é uma experiência feminina e as mulheres vão com as crianças. Então tem muito isso, medo de ir a mãe e as crianças para pescar e sofrer violência. Então o que a Daldina sofreu, de algum modo, estava totalmente relacionado, porque é uma outra roupagem, uma outra face, dessas violências que a gente estava ali abordando. Então, acho que isso é o que o GRIN, no seu momento, conseguiu captar em relação ao diferencial entre os outros materiais.

Juli – Eu ia te perguntar justamente isso da Daldina. Ela morreu um pouco antes de vocês chegarem. Ou seja, quando vocês chegaram lá, vocês já sabiam desse evento ou ficaram sabendo quando chegaram?

Roney – O filme teve várias etapas, primeiro eu fui na aldeia me apresentar, falar sobre o projeto e ver se seria possível realizar ele. E aí, quando saiu o edital eu fui avisar eles que a gente ia fazer o filme. Um pouco depois aconteceu a morte da Daldina e aí suspendeu tudo. A gente jogou, acho que duas semanas assim, foram uns quase 20 dias que a gente teve que, obviamente, jogar pra frente toda a produção esperando um mínimo luto, um tempo ali. E quando a gente chegou, já estava nesse outro momento deles quererem fazer manifestações, ainda em relação ao caso que não estava solucionado, porque ela foi largada sem socorro. Aí eu cheguei nesse outro momento em que já estava nesse outro ponto, com alguma ação ali já em relação ao caso, não estava imediato do acontecido. Então tinha ali um roteiro das pessoas que teria que entrevistar, mas todo o resto de como ia cruzar essas falas foi muito a partir dessas ações de manifestação em relação à Daldina. O filme foi todo atravessado a partir dessa situação que se colocou.

Juli – Claro. E quando vocês fizeram o filme quem vocês acharam que seria o público alvo? Para quem seria esse filme? Quem teria interesse nele?

Roney – Seria legal você perguntar isso pro Isael, assim, no que ele pensou. Mas a Sueli ela co-realiza todas as produções também do Isael e aí acho que, de novo citando a dissertação da Paula Berbert, a gente percebe ali que ela queria que os ãyuhuk, a gente, o estrangeiro, o não indígena, recebesse esse filme, que é também uma forma de flecha, um modo também de continuar nas lutas, para entender obviedades, que pra eles são obviedades, e que às vezes precisa a gente parar e pensar que, como por exemplo ela cita na dissertação, que a ditadura nunca acabou. Eu comento isso porque eu, por exemplo, achei que o filme ia tratar mais recortadamente de um período, a ditadura. Mas aí o filme mesmo acaba mostrando, através dela junto com Isael, que são ecos de violência que perpassam. A ditadura é só uma roupagem dessas violências.

Mas de início eu estava querendo contribuir com o material como documento, começou com essa objetividade, que eu comentei no começo, que gerou documentação para somar à busca da indenização em relação aos Krenak. Virou documento mesmo. Porque era isso que precisava, de um registro até do modo mais cru pensado em estética. Que é uma câmera parada na frente de um idoso que fala. Não tinha muito mais elaboração na perspectiva de que era importante isso, ouvir o idoso na sua versão da história pra gente entender. E então era pra todos os públicos ao mesmo tempo. E para além dessa objetividade, de contribuir com a Comissão… a federal já estava acabando, mas com as comissões estaduais, era de ter um relato da história pelo ponto de vista do indígena, do Maxakali, no caso. E isso aconteceu porque eles queriam falar, então eles queriam falar, mas também trazer o registro para eles mesmos.

O Isael fala que ele queria clarear, no sentido de iluminar esses ocorridos com o povo dele. E é aí quando a gente vê a extensão disso no “Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!” (filme seguinte de Isael e Sueli Maxakali) a gente vê que é pra gente, não indígena, e também pra eles. E ainda sobre público, esse filme, a pré estreia dele mesmo foi na aldeia, mas as primeiras pré estreias foram em escolas. Eu acho que esse é o público também, eu sempre pensei no filme como material para as escolas. Eu acho que tem que estar sempre sendo discutido isso, então também fizemos exibições em museus e espaços de rememoração histórica.

Juli – E o GRIN, ele tem esse efeito também de repovoar o nosso imaginário da ditadura. Porque ele ainda é muito branco, ainda é muito ligado à resistências acadêmicas e masculinas muitas vezes também. E aí eu acho que o filme tem um impacto bem forte, assim, dessa imagem indígena sobre o regime e uma outra linguagem para contar essa história.

Roney – Aproveitando ainda o termo linguagem, uma coisa que eu achava importantíssima era o filme todo ser falado em Maxakali. Porque os outros materiais que até então a gente estava vendo eram todos em português, que é uma segunda língua de todos os povos que estavam ali falando, não era a melhor expressão. Então era toda uma condução do Isael nesse sentido, é muito o que eu falei, que o filme foi atravessado pelo modo Maxakali e era essa a dificuldade da nossa equipe inicialmente, enquanto a gente estava levantando o projeto, a de se permitir atravessar por esses modos do povo Maxakali.

E daí é aquilo, a gente tinha um plano, uma lista de pessoas que a gente ia entrevistar, mas tudo foi atravessado pela morte da Daldina. Era uma morte recente, esse luto ainda sendo vivido, então essa carga ficou realmente muito forte. E quando tem aquele ritual, por exemplo, da Noêmia, que é um ritual em que o espírito da própria Daldina, fica ali cantando, é muito forte esse momento.Tanto que na pré estreia do filme na aldeia, a gente percebeu que trouxe uma tristeza, junto com a felicidade do êxito da conclusão do filme. Por isso só foi possível exibir o filme inteiro na aldeia uma vez só.

Teve uma imediata recepção da tristeza, daquele ritual e daquele luto todo de novo na aldeia, o que também acabava entrando em questões mais da própria cultura, em tabus da própria cultura Maxakali, de que não se pode trazer para a aldeia a pessoa que morreu. A pessoa fica onde faleceu, porque senão vai adoecer outras pessoas, pode trazer a tristeza de novo para a aldeia. Por exemplo, a Sueli viu um primeiro corte e aí, quando chegou nesse ponto ela não queria mais ver. Nesse ponto, digo, nesse ritual da Daldina, nesse momento triste do ritual que eles cantam para ela. Ela sempre achava muito forte.

Tem aquela cena da foto still, não sei se você está lembrada, mas é uma foto borrada. Era uma tentativa de retratar de modo sintético algo que é muito complexo deles, que é que quando você morre, você tem uma imagem, koxuk, que é a mesma palavra para fantasma, mas que você precisa organizar isso em forma de canto. Por isso precisaram fazer um ritual para que ela conseguisse essa transformação em encantado. Eu acho isso também muito poético. Ao mesmo tempo tem um complexidade mais metafísica que nem ousaria falar, mas essa ideia de viração em oposição a uma possível perturbação da imagem fantasma. E como trazer isso? A gente ficou pensando como minimamente pincelar. E aí a gente foi então, numa busca de imagem, mas uma imagem meio fantasmagórica ao mesmo tempo e borrada, que ao mesmo tempo fosse a própria expressão feminina.

Juli: Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar que eu não perguntei?

Roney: Não, acho que só indicar um livro que você acha em PDF e se chama “Desaguar em Cinema”. Ele é um livro com organização da Amaranta Cesar, que é do CachoeiraDoc. Que foi a grande estreia do filme em festivais, que é um festival potente de discussão de imagens para mobilizar coisas e imagens que se acreditam como forças mobilizadoras.

A Rosângela assistiu o GRIN ali e, como ela é uma pesquisadora muito aprofundada assim, dentro da cultura Maxakali, ela trouxe mais nuances de interpretação do próprio filme. A nuance, por exemplo, de interpretação da música. Afinal, a música final do filme é uma música que eles, assim que assistiram, quiseram cantar. É uma música que fala de transformação. Então acho que é um texto que ajuda a enxergar o filme. É o último capítulo do livro, chamado “Campos, Luto e resistência Tikmũ’ũn (Maxakali) no filme GRIN” do Bernard Belisário e da Rosângela de Tugny.

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Mudanças climáticas: o que pensam os jovens indígenas presentes no ATL?

Jovens indígenas presentes na maior mobilização indígena do país, o Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em Brasília nesta semana, falaram com a Agência Pública sobre como a percepção das mudanças climáticas está além das informações transmitidas pela imprensa.


Para os entrevistados, os efeitos da crise estão presentes nas rotinas de pesca, na agricultura de subsistência e no próprio corpo, alterando hábitos e modos de vida em diversas regiões do país.


“A gente já não pesca como a gente pescava, oito, seis anos atrás. Na ilha do Bananal, teve muita queimada esse ano passado. Então, vai sendo um acúmulo de várias coisas que já vai influenciando. No caso do meu povo Karajá, nunca se pensava ‘Ah, vai faltar peixe. A gente tem que ir a um lago específico agora para pescar’, sabe?”, conta Maluá Silva Kuady Karajá, de 25 anos. Ela destaca que o avanço do aquecimento global não se expressa apenas em dados científicos e que as mudanças visíveis no bioma e na fauna impactam diretamente a vida das comunidades.


“Vai mudando o cotidiano completamente. Mudou o bioma, a fauna, as nossas vivências, a nossa vida. E trazendo outras dificuldades que transpassam a questão climática”, afirmou a jovem indígena. A edição deste ano do ATL tem como um dos focos principais a articulação para garantir protagonismo indígena na COP30, conferência climática da ONU que acontecerá em Belém (PA), em novembro. A campanha “A Resposta Somos Nós”, organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), propõe que a demarcação de Terras Indígenas seja incluída como estratégia nas metas ambientais dos países amazônicos.

Apresentação de pautas da Juventude indígena no ATL

“Discutir ambiente sem que o indígena seja uma parte ali do protagonismo, eu acho que já começa a ser problemático, no mínimo, porque, principalmente aqui no nosso país, onde as principais reservas estão dentro dos nossos territórios”, explica Maluá, que ressalta a luta por terras não é pela exploração para um fim econômico, mas para discutir a questão do meio ambiente. “[A discussão] perpassa muitas coisas que estão na essência da nossa vivência”.


De acordo com o MapBiomas, as Terras Indígenas no Brasil representam 13% do território nacional, mas respondem por apenas 1% da perda de vegetação nativa entre 1985 e 2023.





“Tá tudo descontrolado”

Yan Mongoyó, 21 anos, vive em um território de transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga, no sudeste da Bahia, e explica que a seca prolongada têm impedido de diferentes maneiras a agricultura familiar. A aldeia não tem acesso a água encanada e depende de caminhões-pipa. 


“Está muito seco, não conseguimos plantar. Deu uma chuvinha e a gente plantou, mas não sobreviveu. Então a gente está muito preocupado porque a nossa comunidade não é abastecida por água encanada, é abastecida por carro-pipa, um carro-pipa para três famílias. Então não tem como fazer plantação”, relata. “O pessoal que está lá na base é o que mais sofre, principalmente os produtores que estão lá na agricultura familiar”. 

Yan também critica o avanço do agronegócio sobre os territórios indígenas, especialmente nas regiões historicamente esquecidas pela mídia e pelo poder público.


“Não importa qual região é, [os ruralistas] eles estão invadindo, estão destruindo o que eles podem destruir, e a gente que está sofrendo. É uma pauta que abarca todos os povos”, diz. “Eu já estive analisando alguns jornais, e acho que, primeiro, eles estereotipam a gente demais, trazem questões que não têm muito a ver, e não trazem, de fato, o assunto à tona. Normalmente, eles falam muito da Amazônia e tudo, e esquecem dos outros biomas que também são muito importantes. A Caatinga mesmo e o Cerrado estão sofrendo bastante com essas questões climáticas, questão agrária”, afirma Yan.


A ausência de debate sobre o Cerrado é um dos objetivos que Letícia Awju Torino Krikati, 20 anos, tenta mudar no seu município. Única indígena no legislativo do estado do Maranhão, a vereadora de Montes Altos deseja mostrar a importância do Cerrado para o país “pois é onde há as nascentes dos maiores rios, sendo uma base hidrográfica extremamente importante para nós”.


Apesar disso, Letícia conta que enfrenta dificuldades para levar a pauta ambiental para dentro da política municipal, já que em Montes Altos ainda não há oficialmente uma secretaria de Meio Ambiente. “A ausência dessa secretaria afeta nas discussões também das mudanças climáticas dentro dos territórios indígenas. A gente tem a Secretaria de Assuntos Indígenas, mas ela também tem que trabalhar em parceria com outras secretarias”, afirma a vereadora, que ressalta a importância da cooperação entre secretarias para ações conjuntas para preservação das comunidades.


A vereadora Letícia Awju Torino Krikati destaca a importância do Acampamento Terra Livre como espaço fundamental para pautar debates sobre os direitos dos povos indígenas – Crédito: Fernanda Diniz

Ela relembra que os territórios Krikati ainda estão em processo de judicialização e afirma que o povo segue lutando pelo reconhecimento de suas demandas. A comunidade aguarda a decisão da Justiça para que o território seja, de fato, entregue aos Krikati, já que até o momento eles não possuem o documento oficial de posse da terra. 


Mais de 250 processos de demarcação seguem sem conclusão no Brasil. A tese do Marco Temporal, considerada inconstitucional pelo STF, ainda resiste na forma da Lei 14.701, aprovada pelo Congresso.


Garimpo e alimentação

“Hoje os não-indígenas usam o termo de agroecologia, mas a gente sabe que agroecologia é uma apropriação dos saberes indígenas, dos saberes tradicionais”, diz Evelin Cristina Araújo Tupinambá, professora de geografia em Goiânia aos 27 anos. Em sala de aula, ela conecta ciência e ancestralidade para explicar aos alunos as mudanças climáticas e a relação entre territórios indígenas e preservação. 


Evelin destaca ainda que as pautas indígenas variam conforme o território e a vivência de cada povo. No seu caso, vivendo há anos em Goiânia, uma de suas principais lutas está relacionada à preservação do Cerrado e compara essa realidade com a de seu povo, que vive na Amazônia, onde os desafios são outros — como a presença de madeireiras, a extração ilegal e a poluição dos rios.


“São contextos que são diferentes, mas que eles se agregam, sabe? Então, eu acho que por isso as lutas não se desassociam, por mais que a gente está falando de territórios e biomas diferentes, mas a nossa luta é a mesma”, explica Evelin. “Aqui é uma oportunidade de estar oficializando as denúncias que a gente faz. Porque aqui é tipo uma porta de entrada para ir diretamente para o plenário, para a Câmara [dos Deputados]. Diretamente com os agentes que, institucionalmente falando, fazem acontecer”.


Maria Lilane, 24 anos, do povo Baniwa, de São Gabriel da Cachoeira (AM), vê o meio ambiente como uma “segunda casa” e diz que destruí-lo é destruir a própria vida. Ela critica a desigualdade alimentar no Brasil, que, mesmo sendo um dos maiores produtores do mundo, não assegura comida saudável para todos.


“Nós vimos muita desigualdade em questões de alimento. Pessoas que têm mais condições, geralmente têm mais, e as mais necessitadas geralmente ficam com muito pouco, ou então, com sobras, restos. [O alimento] chega bem com o preço exorbitante que é além das expectativas. Preço exorbitante e agrotóxico também. Por mais que eles tentam fazer um alimento saudável, nós sabemos que nos dias de hoje todo alimento industrializado vem com muito agrotóxico. Isso tem um grande impacto não só na vida dos indígenas, como nos brasileiros em geral”.


Yohane Parakanã, 23 anos, aponta o garimpo ilegal, a grilagem, o desmatamento e o uso de mercúrio nos rios como as principais causas da destruição ambiental em seu território. Segundo ele, os danos causados são profundos e duradouros, com impactos visíveis.


“Tá cada vez mais quente. Tem plantas que não tão existindo lá. Nem nós mesmo aguentamos a temperatura do sol. Quando eu era pequeno eu sentia que o clima era tranquilo, menos calor”, diz Yohane, que afirma que a juventude indígena tem papel central na defesa ambiental. “Eu acho que a COP30 vai ser sobre isso. É muito legal a gente participar, é muito importante pra gente. E nós, juventude, levar a mensagem em um caso que envolve vidas das árvores, do índio, dos animais. Eu acho que a gente tem que continuar lutando sempre. Acho que a maioria da gente se preocupa mais com a natureza. Nós indígenas, a gente protege muito, entende? A discussão mais é sobre desmatamento. E é isso, a gente sempre briga [contra o desmatamento]. Todo dia”, complementa o parakanã.


Edição: Thiago Domenici

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Racismo ambiental: 60% dos estudantes de escolas que ficam em áreas de risco são negros

    

Para quase meio milhão de crianças e adolescentes, estar na escola pode significar uma ameaça à vida. Mais de 431 mil estudantes da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio frequentam escolas nas capitais do país que ficam em áreas de risco para deslizamentos de terra, inundações e enxurradas.

A cor da pele de quem estuda nesses locais vulneráveis a eventos extremos aponta para o racismo ambiental existente na educação. Enquanto os estudantes que se declaram pretos ou pardos são 42,52% dos 8 milhões total de matriculados nas capitais, nas escolas em áreas de risco, essa proporção é muito maior: 59,58%. São 257 mil estudantes pretos ou pardos vulneráveis aos riscos climáticos.

Os dados foram tabulados pela Agência Pública a partir da recém-lançada pesquisa O acesso ao verde e a resiliência climática nas escolas das capitais brasileiras, feita pelo Instituto Alana, pela Fiquem Sabendo e pelo MapBiomas.

O levantamento identificou 1.383 escolas em áreas de risco para inundações, enxurradas ou deslizamentos de terra, ou uma a cada 15 escolas das capitais. 89,58% delas ficam dentro de favelas ou a no máximo 500 metros de distância de uma.

A maior parte dessas escolas são negras, ou seja, a quantidade de estudantes que se declaram pretos e pardos é superior a 60% do total de matriculados. São 709 escolas em áreas de risco com maioria de alunos negros, ou 51,2% do total.

“Muitas pessoas refutam o conceito de racismo ambiental e dizem que não existem dados, que não é bem assim. Esse estudo mostra que a cor do risco é negra. O racismo ambiental é uma realidade que também está presente na infraestrutura escolar e afeta diretamente as crianças e os adolescentes”, afirma Maria Isabel Barros, especialista em natureza e crianças do Instituto Alana e uma das coordenadoras da pesquisa.


O estudo cruzou dados do Censo Escolar 2023 de mais de 20 mil escolas públicas e particulares das 27 capitais com a Base Territorial Estatística de Áreas de Risco (Bater), produzida em 2018 pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Salvador (BA) é a capital com maior proporção de escolas inseridas em áreas de risco: são 470 de 935 instituições, metade do total. Em Vitória (ES), uma a cada quatro escolas está nessa condição, situação similar à de Recife (PE), com 23,4%. Belo Horizonte (MG) e Natal (RN) completam as cinco primeiras posições, com 14,1% e 13,4% das escolas em áreas de risco, respectivamente.


Proporção de escolas negras em áreas de risco é maior do que em toda a cidade

Para analisar a dimensão do racismo ambiental nas escolas das capitais, a Pública acessou os microdados da pesquisa e comparou a proporção de escolas negras em áreas de risco com a quantidade de instituições com esse perfil racial em toda a cidade. Assim, foi possível observar o quanto a prevalência de escolas negras em áreas de risco destoa do resto do município.


Ao todo, 14 de 18 capitais têm proporcionalmente mais escolas negras em áreas de risco do que na cidade inteira. Nove cidades não foram contabilizadas, seja porque não possuem escolas em áreas de risco, não possuem escolas com maioria de alunos negros ou não possuem escolas negras em áreas de risco.


“As escolas reproduzem as desigualdades que já estão postas em relação à incidência de áreas de risco nas cidades. Sabemos que os bairros mais vulneráveis aos desastres climáticos são de maioria negra, e com esse estudo descobrimos que as escolas que estão em áreas de risco também têm predominância de alunos negros”, analisa Maria Isabel Barros.



A campeã de racismo ambiental na educação é Vitória. A cidade tem a maior discrepância entre as escolas negras dentro de áreas de risco em relação ao total do município: enquanto pouco mais da metade das escolas têm a maioria dos estudantes pretos ou pardos, 34 das 39 escolas nas regiões vulneráveis aos riscos climáticos são negras.

Porto Velho (RO) possui duas escolas localizadas em áreas de risco e ambas são negras. Já em Macapá (AP), a única escola da cidade que está dentro de área de risco é negra. E das 245 escolas de Florianópolis, apenas duas são negras, e ambas estão inseridas em áreas de risco.

“Quando uma escola está localizada em um lugar que promove risco à vida das crianças e adolescentes, em um território sem infraestrutura adequada e segurança climática, isso é racismo ambiental. Quando a escola precisa ser fechada em momentos de enchentes e calor extremo por falta de infraestrutura, isso também é racismo ambiental”, explica Mariana Belmont, pesquisadora e organizadora do livro Racismo ambiental e emergências climáticas no Brasil (Oralituras, 2023).

Para Belmont, dados de pesquisas como a do Instituto Alana precisam ser compartilhados com toda a comunidade escolar, incluindo os estudantes e os gestores das escolas, para fortalecer a pressão pública por segurança climática nas escolas. “É fundamental que o racismo ambiental seja parte do conteúdo tratado nas salas de aula, para que os alunos entendam seu contexto territorial”, complementa.

Escolas negras afetadas por eventos extremos têm dificuldade para voltar à normalidade

A Escola Estadual Maria José Mabilde, que fica em Porto Alegre, no bairro Arquipélago, está em área de risco hidrológico e ficou três meses sem aulas após o desastre que atingiu o Rio Grande do Sul em maio deste ano. As chuvas sem precedentes causaram uma inundação jamais vista antes na unidade de ensino.

“Em dez anos que trabalho na escola, o máximo de água que eu já vi dentro da escola foi na altura da cintura. Dessa vez, o nível da água passou de 2 metros. Quando teve a previsão de chuvas, nós colocamos as coisas para cima, mas ninguém podia imaginar que seria a maior cheia da história”, contou à Pública o diretor da unidade de ensino, Daniel Pereira de Carvalho.

“Perdemos tudo. Todas as fotos, arquivos, materiais, móveis, o histórico inteiro da escola”, lamenta.

A Maria José Mabilde fica na ilha da Pintada, um local que Carvalho define como “a periferia da periferia” de Porto Alegre. A maioria dos estudantes é parda. No início de 2024, 151 alunos estavam matriculados na escola. Agora, no final do ano letivo, somente 80 crianças estudam no local, e apenas 45 frequentam as aulas presenciais. As outras 35 têm aulas remotas.

“Muitas famílias saíram da ilha depois das últimas chuvas, são pessoas que não estão mais dispostas a passar por aquilo. Os que ficaram vivem com medo. A escola já voltou a funcionar, mas a comunidade está muito prejudicada até agora”, diz o diretor.


Quanto aos alunos que seguiram tendo aulas na escola, Carvalho conta que os traumas não estão aparentes. “A maioria das crianças parece estar bem, brincando normalmente. Mas, por dentro, sei que elas estão sofrendo. Quando chove, as crianças menores começam a chorar. Muitas ficaram com depressão depois do que presenciaram durante o desastre.”

A unidade de ensino está a menos de 10 metros de distância do rio Jacuí e foi construída sobre um terreno arenoso, o que amplia sua vulnerabilidade, explica o diretor. A força das águas causa o deslocamento constante de parte da areia que está sob a escola, gerando uma série de instabilidades físicas.

Outra escola estadual da ilha, a Almirante Barroso, sofreu rachaduras depois das chuvas de maio e está interditada até hoje. Por conta disso, os cerca de 350 estudantes da unidade foram remanejados para a Maria José Mabilde. “Nós dividimos a escola, o pessoal do Almirante fica no térreo e nós, no andar de cima. Isso só funciona porque metade dos nossos alunos parou de vir para a escola, mas mesmo assim gera um desgaste para todo mundo”, afirma.

A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul liberou R$ 300 mil para a reconstrução da Maria José Mabilde. Segundo o dirigente, o valor é inferior ao total de prejuízos com a inundação.

Em Vitória, a Escola Municipal Paulo Reglus Neves Freire, que fica no bairro Inhanguetá, está em área de risco para enxurradas ou inundações. Pretos e pardos são a maioria dos estudantes. A Pública conversou com uma servidora da instituição, que preferiu manter a condição de anonimato.

“A região onde nossa escola fica é muito vulnerável a enchentes. Antes os alunos tinham aula num barracão, e dois anos atrás ele foi demolido e construíram a escola no mesmo lugar. Ainda não tivemos problemas depois da reforma, mas o barracão alagou muitas vezes”, disse a funcionária.

Em Salvador, a Escola Municipal Padre Manuel Correa de Sousa alagou em abril deste ano, como mostrou reportagem do telejornal Bahia Meio Dia, da TV Globo. A instituição fica no bairro Mussurunga, às margens de um córrego que transborda com frequência e causa enchentes em toda a região, segundo moradores ouvidos na matéria. A Pública tentou contato com a instituição para entender se o cenário continua se repetindo, mas não houve retorno.

Sandra Moraes, vice-gestora da Escola Municipal Waldemar Valente, que fica no Recife, diz estar aliviada por não ter precisado fechar a escola em 2024 por conta das chuvas, algo que havia acontecido nos anos anteriores. O pior episódio foi em 2022, quando os estudantes ficaram mais de 15 dias sem aulas por conta de um alagamento extenso que tomou conta do entorno da escola e impediu o deslocamento dos alunos até a instituição.

“Depois do alagamento, as crianças voltaram para a escola muito diferentes, não socializavam, falavam pouco, estavam tímidas e introspectivas. A comunidade toda foi muito abalada, e os alunos ainda estavam se recuperando das perdas da pandemia, então a chuva foi mais um prejuízo para o aprendizado deles”, afirma Moraes.

A Waldemar Valente não chegou a ser incluída como uma das instituições em área de risco para inundações na pesquisa do Instituto Alana. Segundo Maria Isabel, isso pode ser um efeito da falta de atualização da base de dados do Cemaden e do IBGE. “Precisamos ter dados melhores, porque é possível que haja muito mais escolas em áreas de risco, já que a informação mais recente que temos é de 2018”, diz a pesquisadora do Instituto Alana.

O Cemaden aguarda a divulgação dos dados do Censo 2022 por face de quadra para atualizar o mapeamento de áreas de risco.

O que deve ser feito com as escolas que estão em áreas de risco?

O diretor da Escola Maria José Mabilde, na periferia de Porto Alegre, mostra preocupação com o futuro da instituição que comanda. “As cheias do rio vão acontecer sempre, e a tendência é que piorem a cada ano. E não vejo nenhuma obra de contenção sendo feita para evitar que [a inundação] aconteça de novo no ano que vem. Se for para passar por isso toda vez, não tem condição de as crianças ficarem três meses sem aula por ano”, pondera Daniel Pereira de Carvalho.

Para Maria Isabel, é urgente que as escolas em áreas de risco recebam mais atenção nas políticas públicas de educação e nos planos de adaptação climática das cidades, que devem fortalecer as escolas e torná-las mais resistentes aos riscos. E somente nos casos em que isso não for possível é que deve se considerar a construção de novas unidades de ensino em áreas mais seguras, na visão da especialista.

Frente da Escola Maria José Mabilde após inundação causada pelas chuvas

“As crianças e suas famílias estão enraizadas nos lugares perto das escolas. Elas têm seus trabalhos, suas relações sociais. Tem que ser avaliado caso a caso, mas em geral, é muito ruim deslocar uma escola inteira para outra área. Essa tem que ser a última solução, a preferência deve ser fazer com que as escolas fiquem mais seguras e desenvolver protocolos para caso os desastres aconteçam”, diz.

Mariana Belmont defende o mesmo posicionamento. “É preciso olhar para o território pensando em como remover o risco e adaptá-lo para que a comunidade permaneça no seu espaço de convivência, preservando suas relações comunitárias e seus direitos básicos garantidos. Adaptação às mudanças climáticas é readequar o local para se preparar para os eventos climáticos, mas é também um impulso para promover os direitos básicos da população, inclusive a educação”, afirma.


Edição: Giovana Girardi


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