EDUCAÇÃO

 




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EDUCAÇÃO: gestores municipais precisam manifestar interesse na retomada de obras inacabadas

Nathália Ramos Guimarães

Gestores municipais têm até o dia 28 de fevereiro para manifestar interesse na retomada de obras inacabadas, enviando as diligências técnicas solicitadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Gestores municipais têm até o dia 28 de fevereiro para manifestar interesse na retomada de obras escolares paralisadas ou inacabadas, enviando as diligências técnicas solicitadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A medida envolve cerca de 1.400 obras nessa situação, das quais apenas 271 foram concluídas desde o início do Pacto de Retomada de Obras.  

Cesar Lima, especialista em orçamentos públicos, alerta que os municípios que não enviarem as diligências solicitadas no prazo não receberão transferência de recursos para a retomada dessas obras.

Além disso, o especialista ressalta que os municípios precisam ter recursos próprios para complementar o financiamento das obras.

“Porque o FNDE não repassará todo o valor necessário para a finalização das obras. Uma parte será custeada com recurso dos municípios. Então, o município tem que avaliar se essa obra é de real necessidade, se ela é viável e se o município possui, dispõe de recursos próprios para o término dessas obras, que após a retomada devem ser concluídas num prazo de até 2 anos”, informa.

Como participar?

A manifestação de interesse do município deverá ser feita pelo sistema InvestSUS. Para acessar, é necessário possuir um cadastro no Sistema de Cadastro e Permissão de Acesso (SCPA) e um perfil de usuário autorizado.

Pacto Nacional pela Retomada de Obras Inacabadas

O Pacto Nacional pela Retomada de Obras e Serviços de Engenharia na Educação Básica foi criado pela Medida Provisória nº 1.174/2023 para viabilizar a conclusão de obras escolares paralisadas ou inacabadas no país.

A iniciativa, coordenada pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), inclui 1.221 unidades de educação infantil, 989 escolas de ensino fundamental, 35 de ensino profissionalizante, 85 reformas ou ampliações e 1.264 quadras esportivas. O objetivo é criar cerca de 450 mil vagas na rede pública, com investimento de quase R$ 4 bilhões até 2026.

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O necessário resgate do Eros na escola

Educação convencional aspira ao controle por meio de protocolos e cartilhas. Deixa escapar o “radar sensível”: a ativação do desejo coletivo, o futuro aberto e o saber-fazer. O mundo é instável. E o pânico da incerteza só atrofia o aprendizado

Tenho tido o privilégio de trabalhar em institutos públicos como “professor visitante” na disciplina de Filosofia há vários anos. Por que digo privilégio? Porque me parece que a escola hoje é um observatório excepcional para olhar e pensar a sociedade em que vivemos. Um microcosmo onde as tendências e os problemas que moldam o mundo compartilhado se reúnem; e onde também, talvez por razões de escala, às vezes se pode intervir, agir e tentar mudar alguma coisa.

Um dos problemas que encontro nas centros públicos onde trabalho, onipresente nas conversas e preocupações da comunidade escolar, é a questão dos protocolos. A multiplicação dos protocolos escolares, expressão de uma tendência geral à tecnificação da existência. Gostaria de falar sobre isso aqui, de abordar o geral a partir do particular, de abrir uma discussão que me parece urgente.


Os protocolos são caminhos a seguir. Protocolos são aplicados, por exemplo, para lidar com eventos imprevistos ou interrupções no bom funcionamento da escola: bullying, gangues, vícios. Como é sabido, o mal-estar entre os jovens de hoje tem intensidades e modos de expressão (automutilação, suicídio) que ultrapassaram os limiares da visibilidade e fizeram soar todos os alarmes. O número de protocolos abertos nas escolas por questões de segurança hoje é altíssimo. Mas o que se pretende ser um modo de “ativação da atenção” (observação e monitoramento) corre o risco de ser um modo de desativá-la. O que quero dizer?

Um novo fetiche

O protocolo pode ser um quadro de referência, um campo de orientações possíveis, um repertório de respostas possíveis. Cristalizar um saber sobre o passado para que seja útil para o futuro. O problema é que, em meio à pressão pelo desempenho, à precariedade e à falta de tempo, ao transbordamento cotidiano e à individualização da vida escolar, o protocolo é elevado a fetiche, impondo-se de forma obrigatória.

O que é um fetiche? Um objeto que se torna sujeito, convertendo sujeitos em objetos. A crítica do fetichismo é uma perspectiva clássica do pensamento crítico: as mercadorias se tornam fetiches no capitalismo segundo Marx, as máquinas se tornam fetiches no sistema industrial segundo Simone Weil, as imagens são fetichizadas na sociedade do espetáculo segundo Guy Debord. As coisas ganham vida própria (elas decidem, agem, comandam), enquanto os seres humanos se tornam coisas (força de trabalho, engrenagens, espectadores).

Nossa cultura tecnológica fetichiza protocolos. Ela pressupõe que tudo tem uma solução e que sempre há um jeito de alcançá-la. E qual é o problema dessa protocolização generalizada?

Em primeiro lugar, a protocolização dessingulariza o que é apresentado. O protocolo não trata de casos singulares, mas se aplica a diferentes exemplos na mesma série (assédio, etc.). Mas o que acontece na vida escolar e na vida em geral é muitas vezes da ordem dos acontecimentos. Cada mal-estar é singular, algo único que demanda uma escuta e uma resposta específica, particular, própria. O protocolo homogeneíza e torna equivalentes o que são situações distintas.

Em segundo lugar, a protocolização passiva. Apresenta um caminho a seguir, uma série de etapas, uma organização do tempo em tais fases ou sequências, bloqueando assim a capacidade de ação e criação da comunidade escolar. O que percebemos nas palavras ou no comportamento desse menino, dessa menina, dessa criança? O que vamos fazer a respeito? Em qual tempo? O protocolização impede que o problema em questão se torne uma área de pesquisa e construção autônoma.

Terceiro, os protocolos funcionam no dia seguinte. Ou seja, tentam evitar uma escalada ou um desfecho fatal, mas não perguntam sobre as causas, as condições, os contextos do que está acontecendo. Penso agora especialmente sobre protocolos de segurança. Eles não trabalham com “prevenção”, mas com regulação e conjuração. Gerenciam problemas, mas não transformam suas causas. Bloqueiam o pensamento. Do cuidado passamos ao controle.


Por último, mas não menos importante, a protocolização confunde as responsabilidades. Como um professor me confidenciou certa vez em um momento privado: “Estou começando a me importar mais em não perder meu cabelo do que com o que está acontecendo com o menino”. A responsabilidade como assinatura com consequências legais substitui a responsabilidade de pensar e apoiar a pessoa sob sua responsabilidade. Do relacionamento passamos para a individualização, da responsabilidade para o medo.

Um Eros escolar

Há um problema fundamental com essa protocolização da vida escolar. É a atrofia do “radar sensível” que pode permitir que professores, docentes ou qualquer membro da comunidade escolar absorver o que acontece com os seus próprios sentidos, inventar e criar respostas únicas com a sua própria imaginação, no diálogo e na conversa com os outros. O arquivo de protocolos substitui a memória sensível, encarnada no corpo, das histórias de um lugar.

Esse radar é a capacidade de sentir o que está acontecendo mesmo que não haja informação codificada que nos permita deduzir que é isso ou aquilo. Uma pessoa que sofre de desejos suicidas sempre expressa ou verbaliza explicitamente sua intenção? Pode não estar claro nem para ele, mas alguém próximo pode sentir que algo está acontecendo e precisa de atenção. O radar sensível é essa escuta do corpo capaz de captar (e interpretar) o que não está explícito, o que não está codificado, o que passa despercebido.

No final das contas, estamos falando de Eros, de um Eros escolar. Existe escola sem amor? Existe algum tipo de transmissão e aprendizagem minimamente relevante que não envolva a ativação do desejo? Platão formulou isso muito claramente há dois mil e quinhentos anos: o que um professor ensina antes de tudo não é conhecimento, mas amor pelo objeto do conhecimento. E isso acontece por causa da qualidade da presença do professor. O que hoje chamamos de “déficit de atenção” é um déficit de desejo e tem a ver com a escola, não com um mau funcionamento na cabeça das crianças.

Mas este Eros escolar não se limita à sala de aula. Não está relacionado apenas a questões estritas de aprendizagem, mas também a vínculos, cuidados e apoio. É uma forma de ouvir, de estar disponível para os outros, de estar presente sem sobrecarregar outras presenças, de reconhecer os outros e fazê-los sentir que são importantes. Na sala de aula, mas também nas tutorias, nos corredores, no portão da escola. Eros como receptividade: sensibilidade, capacidade de ouvir e acolher.

O maior risco dessa tecnificação geral é suplantar – algo impossível, no limite – esse radar sensível, esse Eros escolar. Quando ele é atrofiado, nada é mais assustador do que a incerteza e as contingências. Não sabemos mais escutar o que não está classificado a priori. Não se sabe mais como agir sem um manual de instruções em mãos. Não se sabe mais como pensar e agir com os outros. Mas a vida escolar é, acima de tudo, feita de contingências. Quem vive lá todos os dias e se mantém desperto sabe bem disso.

Formas e formatos

Tudo isso significa que não devemos planejar nada, que o saber do passado não tem serventia, que trata-se de sempre improvisar? Acredito que não, que essa é uma daqueles alternativas-armadilhas que nos são apresentadas o tempo todo.

Os humanos não têm instintos absolutamente confiáveis e garantidos, mas temos a capacidade de nos dar formas. Formas para a vida e para a vida em comum. Formas que são feitas e desfeitas o tempo todo. Formas capazes de “dar passagem” ao que pede passagem. Deveríamos pensar mais em termos de formas, de criação de formas, do que de instituições, de modelos ou ideais de instituições.

Podemos então distinguir entre formas e formatos. O protocolo é um formato, prêt à porter, pronto para ser executado. Um programa, um script, um automatismo. Ele é baixado e aplicado, sem mais reflexão, sem mais questionamentos, sem mais reconfiguração. A forma é plástica, reformável, transformável, deformável. A singularidade se encaixa nisso. A humanidade sempre soube inventar formas (rituais, cerimônias, dispositivos) onde a diferença não se opõe à repetição, onde o mesmo é sempre novo.

O protocolo é uma forma congelada, parada, morta. Tornou-se muito rígido. Registra o passado e o projeta no futuro, mas apenas como um passado ampliado. Como se o cálculo do que foi pudesse servir para prever tudo o que será. Como se a vida não fosse movimento, diferença, novidade. A forma, porém, contém sedimentos e latências do passado, mas sempre aberta ao futuro, ao que está por vir. É preciso atualizá-lo sempre, na descontinuidade, no salto, na ruptura e na perda.

A instabilidade é o problema do formato. Isso busca neutralizar qualquer perturbação para restaurar a ordem, voltar ao normal e retomar o controle. O inesperado é tomado como inimigo. Por sua vez, a forma não aspira à estabilidade, não teme a instabilidade, pelo contrário, a disrupção permite que ela se recrie. O que “não funciona” na escola não é o que precisa ser “corrigido” e “endireitado”, mas sim o sintoma que poderia ser interrogado em profundidade para transformá-lo.

Diante da ideia de que tudo tem solução e sempre há um jeito de alcançá-la, a forma é uma tentativa, um ensaio, uma maneira de continuar com o problema. Há coisas na vida que não têm solução e só podemos andar em círculos. O amor, por exemplo, não tem fórmula ou formato e só podemos inventar uma e outra vez formas precárias de amor. O impossível não é algo que devemos desistir, mas algo que nos desafia a inventar respostas repetidas vezes, sempre provisórias e revisáveis.

Recuperando a presença

A protocolização da vida escolar é apenas uma expressão particular da protocolização geral da vida. Em todo lugar vemos a mesma fetichização do protocolo, do procedimento garantido que irá “resolver” todos os problemas para nós, poupando-nos o trabalho de ouvir, pensar e inventar todas as vezes. Um behaviorismo generalizado: se você fizer x, então você obterá y. Protocolos contra a violência de todos os tipos, para a gestão de desastres, se quisermos ter sucesso na vida. Mesmo em espaços radicais, como os centros sociais, o fetiche do protocolo substitui hoje o esforço de pensamento e invenção em torno dos mil problemas que viver juntos acarreta.

A cultura tecnológica que prevalece em todos os lugares opera de acordo com o seguinte princípio: tudo deve funcionar, todos os comportamentos podem (e devem) ser reduzidos a funções simples, os defeitos são ruídos a serem eliminados. É a ideia de um mundo completamente transparente, sem mistérios, governável, redutível a dados e previsível, onde toda perturbação deve ser neutralizada, corrigida, resolvida. O próprio Trump venceu a eleição prometendo seguir o protocolo perfeito: “I’ll fix it” tem sido seu slogan de campanha.

O protocolo é o amor por linha reta, mas o humano é justamente aquilo que sempre se distorce. O fracasso de todas as lógicas que pretendem ser absolutas e definitivas. A eficácia dos protocolos é a eficácia das coisas, mas nós não somos coisas, objetos de cálculo, mas um labirinto sem mapa. Uma bagunça, uma confusão, um emaranhado. Planejo e sai y. Eu digo A e você entende B. Em vez de aspirar ao controle total, através do conhecimento que domina ou força, poderíamos aspirar ao saber-fazer com esse desvio, essa torção que somos. Recuperar a presença e a atenção.

Estar atento, estar presente, não significa estar fixo ou concentrado em algo, mas sim estar aberto e disponível ao ambiente, ao encontro, ao acontecimento. Pegar leve com a produtividade, evitar a burocracia, desacelerar o tempo, para que possamos cuidar do que é comum. Mitigar o pânico da incerteza, nos reunir e conversar, falar e pensar sobre o que (nos) acontece, sobre o que é cada vez mais diferente. Sobre o que não sabemos e o que nos desafia. A pergunta “o que está acontecendo?” interrompe os automatismos.

Sem essa interrupção, sem essa disponibilidade, sem tecer cumplicidades, só a protocolização da existência pode triunfar. Delegação em vez de atenção, obediência em vez de desejo, resposta imediata em vez de processo, ausência em vez de presença. Um mundo completamente desabitado e automatizado. Nossa ausência de tudo o que nos requer é a pior das catástrofes, aquela que prepara todas as outras.

* Este texto é baseado em muitas conversas, dentro e fora do ambiente escolar: com Lucía Curras, Juan Carlos Hervás, Cristina Gutiérrez Andérez, Javier Macias, Silvia Duschatzky, o cartel Love&Hate (Mercedes de Francisco, Estela Canuto, Mila Ruiz, Cinthia Gaona ) ou a oficina “Eros e Thanatos na Escola” organizada pelo Museu Reina Sofía.

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A investida do capital contra a merenda escolar

Como frear a terceirização da alimentação escolar em SP. Por que ela pode ampliar a fome, as doenças e a aridez na rede pública. As ameaças de captura do orçamento do PNAE. O instigante projeto de Escolas Comestíveis para produzir hortas, pomares e comida de verdade

Geralmente, quando pensamos em um ambiente escolar, associamos a ele os seus aspectos educativos e socializadores. Afinal, a função das escolas é promover o aprendizado e o convívio, para que as crianças – desde bem pequenas – adentrem no universo sociocultural que se apresenta em seu espaço-tempo. 

Mas, para muitas dessas crianças e jovens, a palavra escola pode levar a uma associação bem diferente: alimento. Sobretudo nas comunidades periféricas, o ato de ir à aula significa a garantia de uma refeição; algo que não é tão certo se os e as estudantes permanecerem em suas casas. Contar com um lanche na hora do recreio e um prato de comida na hora do almoço é garantir que a barriga não vai ficar vazia até a hora do jantar, quando as mães e os pais voltam do trabalho.

Você deve se lembrar de como ficava na expectativa para comer uma sobremesa especial nos almoços celebrativos em família ou um brigadeiro depois que cantassem os parabéns em uma festinha. No caso de muitos alunos e alunas de escolas públicas da periferia, a expectativa é gerada em relação ao simples pão e leite que vão receber no refeitório escolar – muitas vezes, os primeiros alimentos que têm acesso desde o dia anterior.  


Para dar uma ideia do impacto da (popularmente chamada) merenda na alimentação infantil, somente na cidade de São Paulo, através da rede escolar pública, o governo municipal serve mais de 2 milhões de refeições ao dia. É essa comida que vai fornecer uma boa parte da energia e dos nutrientes que a criançada precisa para viver, desenvolver-se e ser parte do corpo social que constrói o dia a dia no território paulistano. Sem esse fornecimento, a insegurança alimentar e nutricional se agravaria profundamente, como pudemos ver durante a pandemia, quando as aulas foram suspensas. 

Mas não é só a manutenção ou não desse fornecimento que está em questão. A qualidade desses alimentos vai interferir diretamente nos cenários presentes e futuros da sociedade, já que alguém mal alimentado não tem a mesma capacidade de aprendizado e de atuação cidadã do que alguém bem alimentado. É por isso que a questão não é somente dar de comer, é oferecer acesso ao que chamamos de comida de verdade, aquela que é feita com ingredientes in natura ou pouco processados, adquiridos da agricultura familiar de base agroecológica e, portanto, livres de substâncias artificiais tóxicas, como os agrovenenos usados nas grandes monoculturas e os aditivos que infestam os produtos ultraprocessados. 

É a partir desse tesouro comestível, adquirido de acordo com a sazonalidade de cada alimento e levando em conta a sua relação com o bioma da região, que as refeições escolares podem trazer sabor, saúde, afeto e cultura, de modo a estimular a plena formação física, psico-emocional e sociocultural dos e das estudantes. 

Quem come o quê 

O Brasil – país com uma agro-socio-biodiversidade riquíssima, com nossas milhares de espécies vegetais comestíveis e nossos diferentes povos formadores – também se destaca quando o assunto é política pública para alimentar quem estuda nas escolas mantidas pelo Estado. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é referência mundial e estipula que (no mínimo) 30% dos alimentos adquiridos e usados no preparo das refeições escolares sejam provenientes da Agricultura Familiar. Sim, é lei – a ser cumprida em todo território brasileiro. 

Trata-se de um instrumento poderoso! E não apenas para levar comida saudável às crianças e aos jovens, mas para fortalecer a produção agrícola das famílias camponesas, já que garante que elas possam vender uma quantidade considerável de alimentos para prefeituras e governos estaduais ao longo do ano, tendo mais previsibilidade para planejar seus plantios. Podemos resumir assim: alimentação nutritiva no prato dos estudantes e remuneração adequada no bolso dos povos do campo. 

Para dar uma ideia de como o programa tem impacto na qualidade do que se come, ele já chegou a adquirir mais de 400 tipos diferentes de alimento, o que traz mais nutrientes, mais sabores e mais saberes às escolas, e faz com que o solo das terras cultivadas seja mais fértil, ao estimular a produção de biodiversidade. 

Há exemplos de locais em que a alimentação escolar pode conter ingredientes da cultura alimentar indígena, em caso de escolas próximas a aldeias. E esses alimentos são cultivados pelas próprias famílias das crianças que frequentam as aulas, sendo um importante instrumento de sobrevivência econômica para esses povos tradicionais e fortalecendo suas tradições, sempre tão ameaçadas pelo sistema produtivo dominante. Isso vale também para outras comunidades, como as quilombolas, ribeirinhas, caiçaras… 


As crianças e jovens que habitam nossos territórios vivem em realidades socioculturais bem diferentes e uma possível padronização das refeições escolares estaria em desarmonia com suas raízes e suas condições de vida. O único setor que ganharia com a imposição de um padrão geral é o corporativo, sobretudo o vinculado ao agronegócio, à indústria alimentícia e à indústria farmacêutica, já que as relações entre a massificação alimentar – com fornecimento em grande escala – e a redução na qualidade do que se come são mais do que comprovadas por estudos no mundo inteiro, o que explica a explosão das chamadas DNTs, as Doenças Não Transmissíveis, como diabetes, pressão alta, câncer… inclusive em crianças pequenas. 

Escola com ou sem veneno 

Há mais de 10 anos atrás, escrevi um artigo para o Relatório de Direitos Humanos no Brasil 2013 com o título “O Envenenamento da Infância” (página 77). Ele traz um alerta sobre os efeitos danosos da crescente exposição aos agrotóxicos, apontando como existe uma correlação inegável entre o aumento dessa exposição e o aumento de processos cancerígenos em faixas etárias extremamente jovens, já que organismos em desenvolvimento têm menos barreiras contra os fatores que levam a mutações no DNA. 

Foi nesse período que realizamos uma audiência sobre o assunto na Câmara Municipal de São Paulo. A doutora Silvia Brandalise, oncologista pediátrica que é referência mundial no setor, fez uma apresentação impactante e contribuiu para que o debate em relação à busca de uma alimentação escolar segura no município se fortalecesse. Organizações sociais, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, participaram do processo que culminou com a criação de um Projeto de Lei que propunha a introdução gradual de alimentos orgânicos nas escolas públicas paulistanas, tendo como meta atingir 100% em 2026.

Sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad em 2015 e regulamentada em 2016, a proposta representou uma conquista de peso na luta pela Agroecologia e se transformou em uma importante referência dentro e fora do país. Sim, trata-se de uma lei, a Lei Municipal da Alimentação Escolar Orgânica – a ser cumprida pela administração municipal de São Paulo, segundo metas crescentes a cada ano. 

Neste ano, 2024, a meta estabelecida equivale a  60% do total dos alimentos fornecidos nas 3.750 unidades educacionais públicas do município. No entanto, o que temos visto na realidade é a aquisição de uma porcentagem muito inferior. Embora não tenhamos ainda os dados oficiais devido à falta de transparência por parte da Secretaria Municipal de Educação, a expectativa é de que não chegue nem a 5%, já que o retrocesso em relação ao cumprimento da lei vem sendo percebido pela sociedade e alardeado nos espaços da mídia independente. 

Podemos elencar muitos fatores para que a Lei da Alimentação Escolar Orgânica esteja sendo tão rudemente desrespeitada pela atual gestão da capital paulista. No entanto, vale a pena olhar com atenção para um deles: a terceirização total do fornecimento em um número crescente de unidades. 

Nutrir os bolsos

Qual a diferença entre uma refeição escolar fornecida diretamente pelo poder público e uma refeição escolar fornecida por uma empresa terceirizada? Podemos começar com uma palavra básica: lucro. 

Na terceirização, uma empresa privada assume a função de fornecer a comida para os estudantes em troca de recursos financeiros que os governos repassam a elas. Para seus sócios, os ganhos ocorrem quando elas não usam todo o valor repassado – o que, a princípio, poderia ser feito com a adoção de uma gestão eficiente, o argumento usado sempre que se defende terceirizar algum serviço. Mas, afinal, o que seria “eficiência” na gestão de um serviço essencial, como fornecer comida adequada e saudável a crianças e adolescentes que frequentam a rede pública de ensino – e que, portanto, fazem parte da população menos endinheirada da cidade?

Na realidade, o que acaba acontecendo é que, muitas vezes, para economizar, as empresas realizam a compra de alimentos mais baratos do que os vendidos por produtores de base agroecológica ou adotam a redução de pagamento para seus funcionários, como as cozinheiras. Assim, a qualidade da alimentação servida pode piorar (e muito!), caso não exista uma forma de controle por parte do poder público e da própria sociedade. Aqui, vale destacar que a Lei estabelece a existência de uma comissão de acompanhamento de sua execução, formada por representantes de organizações sociais. 

São esses representantes que vêm constatando que não há transparência no processo em curso e que o descumprimento das metas é um fato inegável. E o município paulista não é um caso isolado, já que a terceirização vem atropelando municípios de todo o país e prejudicando a alimentação em boa parte das escolas brasileiras. É o que aponta o estudo Terceirização no PNAE: riscos jurídicos e implicações para o cumprimento das diretrizes da alimentação escolar, feito a partir de análises de relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).

“Existem várias modalidades de terceirização. A que a gente trata no artigo é a mais preocupante, que é o que a gente chama de terceirização total, onde você terceiriza não só a mão de obra, mas todo o serviço de alimentação, inclusive a compra dos gêneros alimentícios. Essa modalidade tem caído nos índices nacionais, esse é um bom sinal. Mas algumas regiões, como a região Sudeste, tem um índice muito mais alto que o restante do Brasil”, explica a nutricionista e mestre em Saúde Pública Giorgia Russo, uma das autoras do estudo.

Denúncias têm surgido em muitas localidades do país. Em São Paulo, houve uma reação de forte indignação quando surgiu a notícia de que algumas escolas terceirizadas haviam proibido os e as estudantes de repetir o lanche, caso ainda sentissem fome. É que as empresas recebem um valor por refeição servida e não uma soma total mensal por estudante. Sendo assim, na lógica da iniciativa privada, cada refeição é financeiramente calculada e pedir um pouco mais de algo servido interfere na lucratividade. Dá-lhe capitalismo!

Não deve ser por acaso que, no município, a insegurança alimentar em algum nível atinge surpreendentes 62,7% dos lares em que existe ao menos uma pessoa menor de 18 anos, de acordo com o I Inquérito Sobre a Situação Alimentar do Município de São Paulo, lançado recentemente e boicotado pela atual prefeitura – cujo “dono da cadeira” afirma que não há fome no território administrado por ele, muito menos em um nível tão superior à média no país.

Parcela única na barriga das empresas 

E as ameaças de privataria não vêm somente de administrações municipais e estaduais. Recentemente, houve uma ameaça de votar o Projeto de Lei nº 3.096/2024, de autoria da senadora Dorinha Seabra (UNIÃO/TO), na Comissão de Educação do Senado Federal. Ele autoriza a terceirização do PNAE em instituições federais de ensino e propõe entregar – às supostas empresas responsáveis pelo serviço – o orçamento anual do programa, em uma parcela única, a ser digerida avidamente nas panças privadas. É um incentivo inegável à adoção da tal terceirização total, considerada a mais prejudicial pelas pessoas que estudam o assunto. 

Além do impacto nas 685 unidades de ensino em questão, que totalizam cerca de um milhão e quinhentos mil estudantes, a medida abriria um precedente no setor, o que poderia levar a futuras autorizações nos níveis estadual e municipal, em um efeito cascata. Por hora, após forte reação por parte das organizações da sociedade civil contra o PL, ele foi retirado de pauta; mas o alerta segue ecoando nas redes ativistas pelo DHANA, o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas. 

Há, ainda, uma outra batalha em esfera nacional que vem sendo travada e também envolve a questão financeira: o reajuste dos valores destinados ao PNAE. É que o programa perdeu muito poder aquisitivo, principalmente durante os anos Temer/Bolsonaro, e é necessário recuperar sua capacidade de proporcionar aos gestores governamentais a aquisição de comida em quantidade e qualidade para a rede escolar. A campanha Reajusta PNAE Sempre traz dados contundentes e propostas efetivas, e merece nosso apoio. 

Em tempos de debate sobre o orçamento do ano que vem e de disputa por recursos dentro do Pacote de Gastos do governo federal, garantir um aumento para o PNAE é bater de frente com a turma do rentismo e de setores que, mesmo gritando aos quatro ventos que são a favor da regulação pelo livre mercado, continuam mamando nas tetas públicas com toda a cara de pau, seja com isenção de impostos, seja com crédito farto e barato. Estamos falando, mais uma vez, do Ogronegócio monocultor e da Indústria Alimentícia, não por acaso as mesmas que não têm o menor interesse em fortalecer a compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação nas escolas. Elas querem ganhar duplamente: monopolizando as verbas e benesses governamentais e vendendo seus produtos para os gestores das compras de alimentos para a “merenda”. 

Escolas Comestíveis 

Voltando à conversa inicial deste artigo, nós vimos que, ao pensar em escolas, é preciso pensar em comida, não é? Mas, além de um local que distribui refeições preparadas com ingredientes produzidos por agricultores e agricultoras familiares, adquiridos com recursos do poder público, as escolas também podem ser espaços de cultivo. 

E não somos só nós, movimentos agroecológicos, que levantamos essa bandeira. Existem leis e programas que tratam da implantação de hortas escolares em vários municípios. O próprio decreto que regulamenta a Lei Municipal da Alimentação Escolar Orgânica de São Paulo faz referência à criação de canteiros biodiversos para contribuir com o alcance das metas estabelecidas e estimular o diálogo entre a educação ambiental e a educação nutricional. 

MUDA, Movimento Urbano de Agroecologia, é parceiro do Instituto Kairós no desenvolvimento do projeto Viva Agroecologia, uma ação que fomenta um circuito de hortas e viveiros de PANC – Plantas Alimentícias Não Convencionais – para mobilizar a comunidade escolar e fortalecer a resiliência alimentar, algo cada vez mais necessário em tempos de eventos extremos, desencadeados pela emergência climática, e de má alimentação, decorrente da influência da publicidade de ultraprocessados. 

O recém-divulgado estudo O Acesso ao Verde e a Resiliência Climática nas Escolas das Capitais Brasileiras, feito pelo Instituto Alana, Fiquem Sabendo e MapBiomas, revelou que há cerca de 400 mil estudantes que frequentam escolas em áreas de risco climático; que 4 em cada 10 escolas não têm áreas verdes; e que isso ocorre sobretudo nas unidades em que a maioria dos alunos é negra, mostrando os laços existentes entre desigualdades raciais, sociais e ambientais. Provavelmente, são justamente estudantes nessa situação que sofrem mais de insegurança alimentar e nutricional. 

Já pensou no impacto que o cultivo de hortaliças e árvores frutíferas no espaço escolar ou no entorno das escolas poderia ter na vida dessas pessoas? No caso de canteiros de PANC, que são muito resilientes, há espécies que não morrem mesmo em época de recesso escolar, ao não receberem o cuidado constante, que costuma ser feito nos dias de aula. E podem até ser fonte de alimento durante esse período de pausa no fornecimento das refeições, caso estejam acessíveis às comunidades.

Por falar em recesso escolar, ele está aí. Você costumava ficar feliz quando saía de férias na época em que era estudante? Realmente, parece muito razoável se sentir contente em ter mais tempo para brincar… Mas, caso você não tenha comida na barriga, a brincadeira pode não ser muito divertida, não é? Se para boa parte das crianças e jovens que frequentam as escolas particulares, as férias representam diversão, liberdade e descoberta de novos lugares… para uma parcela de quem estuda na rede pública, elas significam que não vão ter a hora do lanche na rotina diária e que podem ficar horas e horas sem nada para mastigar ou beber. 

Estamos em dezembro, em breve entraremos em janeiro… as escolas ficam vazias, muitas barrigas ficam vazias. Que possamos agir com firmeza para que, na volta das aulas, as leis que garantem uma alimentação nutritiva em todos os aspectos – pessoais, sociais, culturais e ambientais – sejam realmente cumpridas. Que novas leis e programas surjam para fortalecer a Agroecologia na vida escolar. 

As escolas podem e devem ser espaços comestíveis, com hortas, pomares e comida de verdade nas refeições. 

As escolas não devem ser espaços devoradores, em que, em nome do lucro de poucos, o futuro de todos seja engolido.

Está mais do que na hora de cultivar conjuntamente as sementes de plantas e as sementes de gentes, para que toda a sociedade possa colher os frutos saudáveis que vão brotar dessa muvuca revolucionária!

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