Olá, Esta newsletter será diferente. Além de apresentar dados do Fogo Cruzado e analisar aspectos da violência armada, vou contar uma história pessoal.
Há alguns meses procurei o produtor de um programa jornalístico importante com dados exclusivos sobre a violência armada em uma capital do Nordeste. Ele não conseguiu emplacar a matéria e me contou o veredicto da chefia: “se ainda fosse no Rio de Janeiro ou se tivesse atingido o filho de alguém famoso, dava para considerar”.
Esse caso não é único. Uma amiga que trabalha na sucursal do Rio de um grande portal me disse que seu editor indicou logo que chegou: “criança baleada não é pauta, ninguém lê mais sobre isso”.
O jornalismo é cruel, mas é também sintoma do espírito do nosso tempo. A sociedade brasileira está apática diante da violência. Todo mundo sente medo e parece que não sobrou espaço para a indignação. Uma criança baleada não é pauta para o jornalismo, mas pelo que vejo também não é para gestores e políticos. Em média, duas crianças foram baleadas por mês no Rio de Janeiro em 2023 e 2024 — e não lembro de ter ouvido um pio do governador Cláudio Castro sobre isso.
No entanto, nas últimas semanas a violência policial parece ter finalmente sacudido a consciência da sociedade — ou parte dela. Uma sucessão de casos em São Paulo — estado que registrou um aumento de 52% nas mortes por intervenção policial em 2024 — expôs a brutalidade cotidiana de nossas forças de segurança. Um dos eventos mais recentes é devastador: Ryan da Silva Andrade Santos, 4 anos, morreu com um tiro no abdômen enquanto brincava na frente de sua casa em Santos durante uma operação policial. A tragédia carrega uma crueldade adicional: há apenas dez meses, seu pai, Leonel Andrade Santos, também foi morto a tiros durante a Operação Verão na Baixada Santista — ação que deixou 56 mortos. Diante da morte do menino, a mesma polícia que matou seu pai limitou-se a dizer que “lamenta” o ocorrido.
A barbaridade policial em São Paulo mexeu com o jornalismo, com políticos, com todo mundo. Mas ela não é novidade. Pergunte aos moradores do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, que eles têm muito para contar.
Em 2024 a Maré foi o bairro onde o Fogo Cruzado registrou mais tiroteios durante ações policiais, 48. Um aumento de 41% em relação ao mesmo período do ano passado, onde foram registrados 34 tiroteios em ações policiais. Por que tanta operação? Qual o objetivo delas? Elas alcançaram este objetivo? Acabou o tráfico? A família de Alessa Brasil, 30 anos, merecia essas respostas. Alessa era contadora e levava uma amiga para a Vila do João, na Maré, quando foi atingida por um tiro durante uma ação policial. Chegou a ser socorrida, mas não resistiu ao ferimento. E ela não foi a única. Quarenta pessoas foram baleadas no Complexo da Maré em 2024, 35 delas durante operações policiais.
As polícias são estaduais, mas a violência é nacional.
O Fogo Cruzado acaba de completar um ano no Pará e um indicador chama atenção. 41,3% dos tiroteios que registramos em Belém e região metropolitana envolveram forças policiais. É um índice impressionante, sobretudo se você considerar que produzimos dados no Rio e também na Bahia, estado que ostenta a polícia mais letal do país. O Pará supera a média de ambos.
No início de dezembro, enquanto os principais telejornais repercutiam os casos que se sucederam em São Paulo, Gabriel Santos Costa, 17 anos, e Haziel Martins Costa, 19 anos, foram rendidos por um policial em Salvador. O caso aconteceu em um bairro nobre, Ondina, a cerca de dois quilômetros do Palácio de Ondina, residência oficial do governador da Bahia, e foi filmado por uma pessoa que mora na região. O vídeo é impressionante: os jovens estão rendidos, deitados de bruços no chão com as mãos na nuca. O policial militar xinga, chuta ambos e depois efetua mais de doze tiros contra a dupla. Gabriel morreu na hora. Se o caso não tivesse sido filmado, será que o policial estaria preso? Qual versão deste crime chegaria para a população?
Como vimos em São Paulo e em Salvador, os registros em vídeo são importantes para os casos serem divulgados e os policiais afastados ou presos. Eles, no entanto, não são suficientes para barrar a impunidade. Dárik Sampaio da Silva, 13 anos, era atleta de futsal sub-14 do Sport, onde jogava desde os sete anos. Ele estava com duas amigas em frente ao portão da casa de uma delas, em 16 de março, quando a polícia entrou na rua, durante uma perseguição. Dárik foi baleado e morreu.
A cena foi registrada por câmeras de segurança. Contudo, oito meses após o caso, a Corregedoria da Secretaria de Defesa Social e a Polícia Civil de Pernambuco concluíram as investigações sobre a morte do adolescente e consideraram que não houve transgressão disciplinar por parte dos policiais envolvidos.
Os números e as histórias revelam uma tendência nacional preocupante: as forças policiais são protagonistas da violência armada. Seja no Rio de Janeiro, em Belém ou São Paulo, o padrão é claro: a política de segurança pública está baseada no confronto e ainda tem a letalidade como medida de sucesso.
O contraste com outros países é chocante. Enquanto o Brasil registra cerca de 6.000 mortes por intervenção policial por ano, os Estados Unidos, com população 50% maior e elevado índice de violência armada, registram cerca de 1.200 mortes cometidas por agentes de segurança. Na Alemanha, foram 11 mortes em 2022 e 10 em 2023. No Reino Unido, foram registrados dois casos em 2022 e em 2023. Em Portugal, a média é de uma morte a cada dois anos.
São os mesmos países que costumamos admirar por sua economia e educação que nos mostram ser possível fazer diferente. Não é coincidência: não existe desenvolvimento real quando uma criança como Ryan morre brincando na porta de casa meses após perder o pai para a mesma violência, quando adolescentes são executados rendidos, quando a farda que deveria proteger se torna motivo de medo. A mudança passa pelo fortalecimento urgente do controle externo das polícias, pelo fim da política do confronto, e por uma transformação profunda na cultura policial. Porque cada Ryan, cada Gabriel, cada Dárik, cada Alessa que perdemos não é apenas uma estatística — é um futuro inteiro que deixa de existir. |
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