INTERNACIONAL





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EUA tentam asfixiar Cuba via bloqueio da exportação de serviço médico

Cancelamento de vistos atingiu brasileiros, caribenhos e africanos

    

Além de funcionários brasileiros ligados ao programa Mais Médicos, o Departamento de Estado dos Estados Unidos (EUA) cancelou, no mesmo dia, vistos de funcionários de governos africanos, granadino e cubano, e seus familiares, envolvidos em programas de cooperação na área médica com Cuba.

A ação da Casa Branca tem como objetivo asfixiar economicamente Cuba ao constranger parceiros na tentativa de bloquear uma das principais fontes de recursos do país: a exportação de serviços médicos.

Para o analista de geopolítica Hugo Albuquerque, a ação do governo Trump foi uma provocação tentando aumentar o isolamento de Cuba, ao mesmo tempo que tenta uma “mudança de governo” no Brasil.  

“É uma manobra de provocação de algo que a extrema direita tinha sido contrária há mais de 10 anos. Foi uma política importante do governo da Dilma e foi polêmica porque diminuía o isolamento da ilha”, disse, se referindo ao programa Mais Médicos.

Departamento de Estado dos EUA, chefiado pelo descendente de cubanos Marco Rubio, afirma que esse esquema "enriquece o corrupto regime cubano, ao mesmo tempo em que priva o povo cubano de cuidados médicos essenciais".

"Os Estados Unidos continuam a interagir com os governos e tomarão as medidas necessárias para pôr fim a esse trabalho forçado”, diz. 

O primeiro vice-presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, em sessão constitutiva da IX legislatura da Assembleia Nacional do Poder Popular

O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, defende a legitimidade da cooperação médica - Agência EFE/Alejandro Ernesto/direitos reservados

O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, condenou a ação do governo estadunidense e defendeu a legitimidade do país de recorrer à cooperação médica como fonte de ingressos externos.

“A colaboração cubana tem sido uma fonte honesta de renda para o país, com base nas capacidades que o país criou, e com base nas necessidades de governos de países que precisaram e solicitaram essa cooperação. Isso é feito com benefício mútuo. Apesar disso, muitas das brigadas e missões médicas cubanas também têm sido totalmente gratuitas”, explicou o mandatário cubano.

Cerco a Cuba

Desde fevereiro deste ano, a Casa Branca vem ameaçando os países que cooperam na área médica com Cuba. Segundo o Ministério da Saúde do país caribenho, a ilha mantém atualmente 24 mil médicos em 56 países.

Estima-se que, em 2019, a exportação de serviços médicos representou 46% das exportações cubanas e 6% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estudo do doutor em sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), Samuel Farber.

Os EUA impõem, há mais de 60 anos, um duro bloqueio econômico à ilha caribenha com o objetivo de mudar o regime político do país, estabelecido após a Revolução de 1959. O embargo à Cuba é condenado pela maioria dos países, que consideram uma violação ao direito internacional.

Cuba tem esse programa de cooperação médica desde a década de 1960. Ao longo da história, 605 mil médicos de Cuba atuaram em 165 nações. Países como Portugal, Ucrânia, Rússia e Espanha, Argélia e Chile receberam médicos cubanos ao longo de mais de 60 anos. Os dados são do Ministério da Saúde de Cuba.

Países caribenhos

Chefes de Estado e de governo do Caribe, onde essa cooperação médica com Cuba tem longa tradição, criticaram a pressão da Casa Branca para suspender os acordos.

A primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, destacou que o país não teria superado a pandemia de Covid-19 sem os médicos e enfermeiros cubanos, que receberam o mesmo salário dos barbadianos.  

“A ideia passada por esse governo dos EUA, mas também pelos anteriores, de que estamos envolvidos em tráfico de pessoas ao vincular-nos com as enfermeiras cubanas, foi totalmente repudiado e rechaçado por nós. Se o custo para isso é a perda do meu visto dos EUA, então que assim seja”, afirmou Mia.

Já o primeiro-ministro de Trinidade e Tobago, Keith Rowley, rechaçou a acusação dos EUA de contribuir com “trabalho forçado” por assinar acordos na área médica.

“Somos chamados de traficantes de pessoas porque contratamos técnicos a quem pagamos em dólar igual aos preços locais. Acabei de voltar da Califórnia e, se nunca mais a vir na minha vida, garantirei que a soberania de Trinidad e Tobago seja conhecida por seu povo e respeitada por todos”, afirmou sobre a ameaça de ter o visto para os EUA cancelado.

O primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, Ralf Gonsalves, também rejeitou cancelar os acordos com Cuba e deixar pessoas do país sem acesso à assistência médica.

“Se os cubanos não estiverem ai, quem poderá oferecer esse serviço [de hemodiálise para 60 pacientes]? Esperam que eu cancele a cooperação porque quero manter um visto [para entrar nos EUA]? Deixaria que 60 pessoas pobres morram? Isso nunca acontecerá”, afirmou.

Em outubro de 2013, médicos cubanos desembarcavam em Brasília contratados pelo Programa Mais Médicos

Em outubro de 2013, médicos cubanos desembarcavam em Brasília contratados pelo Programa Mais Médicos - José Cruz/Agência Brasil

Brasil

O especialista Hugo Albuquerque avalia que o cancelamento do visto de funcionários do Ministério da Saúde ligados ao Mais Médicos é  uma tentativa de escalar a crise com o Brasil. 

"O governo Trump, na medida que ele não está conseguindo o que ele quer com o Brasil, ele está aumentando o cerco. A administração Trump achava que as tarifas contra o comércio iam bastar para derrubar o governo brasileiro. É uma escalada. Trump se resolveu por uma mudança de regime no Brasil de uma maneira bastante descarada e até surpreendente", comentou. 

Para ele, Trump quer evitar que o Brasil saia da área de influência de Washington em meio à guerra comercial contra a China. 

"Trump está transformando o Brasil num experimento. Essas medidas estão sendo aplicadas agora com o objetivo de basicamente submeter o Brasil sem dar nada em troca. Nada que o Brasil fizer para cooperar vai ser recompensado", avalia.

Mais Médicos 

Entre 2013 e 2018, existiu uma cooperação do Brasil com Cuba via Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). O acordo empregou até 11 mil médicos cubanos em todo o país em seu auge, o que representou mais da metade dos profissionais do programa Mais Médicos.

Atualmente, existem ainda 2,6 mil cubanos que atuam pelo Mais Médicos, o que representa cerca de 10% do total. Porém, a participação não se dá mais via OPAS, mas sim por meio de editais abertos a todos os estrangeiros que queiram ocupar as vagas não preenchidas pelos brasileiros.

O programa Mais Médicos registra alta avaliação popular ao disponibilizar profissionais de saúde básica para mais de 4 mil municípios brasileiros e ter beneficiado, desde a criação em 2013, mais de 66,6 milhões de pessoas. Os dados são do Ministério da Saúde (MS).

Apenas no primeiro ano do Mais Médicos, a cobertura de atenção básica de saúde aumentou de 10,8% para 24,6% da população. A atenção básica é onde se concentra cerca de 80% dos problemas de saúde.


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Lula-Xi: Poderão os BRICS enfrentar o Ocidente em crise?

    Em notável sinal dos novos tempos, partiu do Sul Global a primeira reação à arrogância imperial de Trump. Por que a iniciativa dos presidentes é promissora. Como ela poderia repercutir também nas relações bilaterais China-Brasil, hoje marcadas por desigualdade

Publicada nas primeiras horas desta terça-feira (12/8), a nota da agência chinesa Xinhua sobre a conversa telefônica mantida pouco antes pelos presidentes do Brasil e da China sequer menciona os Estados Unidos. Tampouco recorre a termos como “império” ou “colonialismo”. A força do conteúdo tornou os adjetivos dispensáveis. Num contexto em que Brasília é acossada por um “tarifaço” decretado por Donald Trump, e em que Washington ameaça impor sanções suplementares, Xi Jinping anunciou que “apoia o Brasil na salvaguarda de seus legítimos direitos e interesses”. E propõe um passo adiante. “A China – afirmou – está pronta a trabalhar com o Brasil, para estabelecer um exemplo de autossuficiência entre grandes países do Sul Global, e a construir em conjunto um mundo mais justo e um planeta mais sustentável.”

Lula e Xi conversaram por cerca de uma hora, informa a Agência Brasil. O diálogo segue-se a uma série de contatos bilaterais anteriores mantidos, nos últimos dias, por quatro chefes de Estado dos BRICS (Vladimir Putin, da Rússia, e Narendra Modi, da Índia, também participaram). O que a nota da Xinhua revela é geopoliticamente muito relevante por dois motivos.

Primeiro: o bloco surgido no Sul Global parece disposto a encarar as ameaças de Trump, num cenário em que nações muito poderosas curvaram-se. O que se viu na sequência ao 2 de abril, quando o líder global da ultradireita anunciou sua guerra comercial, foi o avassalamento daqueles que melhor poderiam resistir. A União Europeia em bloco, o Japão, a Coreia do Sul, a Suíça – todos estes se dobraram, apressando concessões e, em alguns casos, humilhando-se (a presidente suíça abalou-se para Washington, onde passou pelo vexame de sequer ser recebida por Trump). O fato de uma atitude digna caber aos BRICS ressalta, por contraste, o declínio político e moral da ordem eurocêntrica; e o papel central que o bloco do Sul pode assumir, a despeito de suas contradições. Vale ler, a este respeito, artigo de Walden Bello que Outras Palavras traduziu e publicou há dias.

Segundo: salta aos olhos, no questionamento a Trump, a participação de um país latino-americano. Na condição de presidente pro-tempore dos BRICS, partiu de Lula a iniciativa dos diálogos com Xi e Modi. Esta disposição envolve uma região que a Casa Branca vê como quintal ao menos há 202 anos, quando o presidente James Monroe enunciou a Doutrina que levou seu nome. E no caso particular do Brasil, há uma relação especial, desenvolvida há mais de 80 anos. A partir de meados da II Guerra Mundial, os EUA tiveram enorme peso na vida política, econômica e cultural do país. A grande tentativa de superar esta dependência, em meio às Reformas de Base do governo João Goulart, resultou no golpe de 1964

Embora em declínio rápido, a ordem eurocêntrica ampara-se em bases multisseculares. O enfrentamento a Trump, que agora começa a se esboçar, será um processo árduo, contraditório e possivelmente prolongado. No Brasil, enfrenta resistência no Congresso, no empresariado, nos meios militares e mesmo no interior do governo Lula e das forças que compõem sua base de apoio. Os laços com os EUA estão, tudo indica, na origem da timidez com que o Palácio do Planalto respondeu, durante dois anos e meio, a tentativas explícitas de aproximação da China. Também bloqueiam, até agora, a aceitação do convite de Pequim para que o Brasil some-se às Novas Rotas da Seda – onde o país poderia desempenhar papel proeminente. É um alívio perceber no gesto de Lula, correspondido de pronto por Xi, um sinal de que a resistência pode estar enfraquecendo.


E este acercamento político poderia estimular, também, uma revisão das próprias relações entre Brasil e China. Há anos, Pequim é nosso principal parceiro comercial. O fluxo de importações e exportações é duas vezes maior que o registrado vis-à-vis Washington. Mas o sentido do comércio ainda é desigual. O Brasil exporta essencialmente produtos primários – soja, petróleo e minério de ferro, sobretudo – e compra da China produtos e serviços industrializados e de alta tecnologia. Dois motores produzem esta desigualdade. No lado brasileiro, a relação dominada por elites de mentalidade colonial, interessadas em oferecer as riquezas naturais do país e incapazes de se solidarizar com as maiorias. Já a presença chinesa é ditada até o momento por empresas privadas, cujo objetivo essencial é o lucro.

Se a relação passar a envolver os dois Estados, como agora parece possível, ela poderá assumir outro caráter. Num texto publicado em 2024Outras Palavras indicava algumas das possíveis dimensões de uma nova parceria: na indústria; na Saúde; na transição energética; num novo projeto para a Amazônia, que preserve a floresta em pé; na IA e tecnologias de informação e comunicação, onde reinam hoje as big techs norte-americanas; e até mesmo da Defesa, para fazer contraste à enorme influência dos Estados Unidos.

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MAGA: Como o tiro de Trump sai pela culatra

    Em 200 dias, governo que queria restaurar a “grandeza” dos EUA, produz o oposto. Washington confronta aliados estratégicos, envolve-se em atoleiros, fracassa frente a inimigos e vê Pequim despontar como alternativa de estabilidade e confiança

Por Timothy Hopper, no Foreign Policy in Focus | Tradução: Antonio Martins

Donald Trump chegou ao poder com o slogan grandioso de “Make America Great Again”, “Tornar os EUA grandes outra vez”, prometendo recolocar o país num ápice inigualável de poder global. Essa promessa, carregada de fervor nacionalista, conquistou o coração de seus apoiadores.

No entanto, ao revisar seus primeiros 200 dias de governo – especialmente o recente ataque às instalações nucleares do Irã – surge uma pergunta fundamental. Esse slogan realmente tornou os EUA maiores ou, na verdade, acabou fortalecendo outros atores geopolíticos, de adversários a aliados? De um Irã mais unido e uma Europa em busca de autonomia a uma China mais legitimada e um Israel mais dependente, as políticas unilaterais e sensacionalistas de Trump têm gerado com frequência o oposto do que pretendiam.

Irã: União forjada pela ameaça militar


A estratégia de “pressão máxima” de Trump contra o Irã, que começou com a retirada dos EUA do acordo nuclear em 2018, culminou em um ataque militar sem precedentes às instalações nucleares de Fordow, Natanz e Isfahan em 22 de junho de 2025. Essa operação, realizada com bombardeiros “invisíveis” B-2 e mísseis Tomahawk, tinha como objetivo destruir o programa nuclear iraniano e forçar Teerã à submissão.
Em vez disso, o tiro saiu pela culatra de forma espetacular. Ao invés de enfraquecer o Irã, reforçou um sentimento de solidariedade nacional. Diante de sanções econômicas esmagadoras e agora uma ameaça militar explícita, os iranianos se uniram em torno da bandeira. Autoridades do país anunciaram, além disso que as instalações nucleares haviam sido evacuados antecipadamente e não continham material radioativo, demonstrando a preparação do Irã para esse cenário extremo.

Além de não causar danos irreparáveis ao programa nuclear iraniano, o ataque concedeu a Teerã maior legitimidade internacional – especialmente entre os países do Sul Global. O ataque de retaliação do Irã a uma base militar dos EUA no Catar deixou claro que Teerã não é passivo nem impotente para reagir e afetar os interesses norte-americanos.

Europa: Impulso rumo à autonomia militar

Trump celebrou como um grande sucesso sua pressão implacável sobre os membros da OTAN para que aumentem os gastos com defesa para 5% do PIB. Na cúpula recente da orgnização (junho de 2025 em Haia), todos os membros, exceto a Espanha, concordaram em atingir essa meta até 2035.

No entanto, essa abordagem agressiva gerou um resultado paradoxal. Liderados pela França e Alemanha, os europeus aceleraram sua busca por autonomia de defesa. Iniciativas como o Fundo Europeu de Defesa e a Iniciativa Europeia de Intervenção mostram a determinação da Europa em reduzir a dependência da hegemonia dos EUA e desenvolver suas próprias capacidades militares independentes. A longo prazo, esses avanços podem transformar a Europa em um ator militar mais poderoso e autônomo, agindo com menos deferência a Washington.
China: Papel global legitimado graças aos erros dos EUA

A guerra comercial de Trump contra a China, que visava conter a ascensão econômica e a influência global de Pequim, incluiu tarifas pesadas e restrições comerciais. No entanto, essas medidas foram em grande parte um tiro no pé.

Enquanto as ações unilaterais e erráticas dos EUA – inclusive ações desestabilizadoras no Oriente Médio – corroíam sua posição global, a China aproveitou a oportunidade para se apresentar como um parceiro estável e confiável, especialmente por meio de sua Iniciativa do Cinturão e Rota e do aprofundamento de laços com nações em desenvolvimento.
A mídia estatal chinesa classificou as ações americanas como “insensatas” e uma ameaça à ordem global, usando esse discurso para consolidar a imagem da China como uma potência legítima e estável.

Ao diversificar suas fontes de energia por meio de parcerias com a Rússia e a Ásia Central, a China também reduziu sua vulnerabilidade a rotas comerciais arriscadas. Como resultado, os esforços para conter Pequim não a enfraqueceram, mas reforçaram sua posição, enquanto o isolamento dos EUA no cenário mundial aumentava.


Israel: Dependência às custas dos interesses dos EUA

O apoio incondicional de Trump a Israel – desde a mudança da embaixada dos EUA para Jerusalém até o ataque conjunto às instalações nucleares do Irã – supostamente visava fortalecer os laços bilaterais. Na realidade, essas políticas, em especial o ataque coordenado mais recente, apenas aprofundaram a dependência de Israel em relação a um auxílio financeiro e militar norte-americano sem precedentes.

Essa dependência canalizou recursos dos EUA para um compromisso caro e de prazo indefinido, que também aumentou as tensões regionais. O jornal israelense Haaretz alertou que o ataque poderia arrastar Israel para uma “longa e sangrenta guerra de atrito” e até elevar o risco de um conflito global. Em vez de servir aos interesses de longo prazo dos EUA, essas ações deram ao Irã e a outros atores regionais um pretexto para expandir sua influência, deixando Washington arcando com os altos custos de sustentar Israel.

crescente isolamento dos EUA

Talvez o maior paradoxo das políticas de Trump seja que, apesar de terem sido concebidas para tornar os EUA “maiores”, elas os deixaram mais isolados no cenário global.

O ataque ao Irã – denunciado pelos democratas dos EUA como carente de uma estratégia clara e de autorização do Congresso – atraiu condenação internacional. Países como Cuba, Iraque e Turquia criticaram a ação.

O unilateralismo de Trump, sua retirada de acordos internacionais como o acordo nuclear com o Irã e suas decisões impulsivas não apenas fortaleceram rivais, mas também corroeram a confiança dos aliados.

Em um mundo cada vez mais dependente de cooperação, as políticas divisionistas de Trump empurraram os EUA de uma posição de liderança para as margens. “Make America Great Again” foi uma promessa que conquistou muitos corações. Mas, na prática, acabou beneficiando outros.

O ataque militar ao Irã, que deveria demonstrar o poderis norte-americano, unificou o país. A Europa avançou rumo à independência defensiva. A China ganhou legitimidade global. E Israel se tornou uma dependência cara. Longe de cumprir sua promessa original, a agenda de Trump paradoxalmente fortaleceu outros – frequentemente às custas dos próprios EUA.

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Por que Trump teme os BRICS

    Há base objetiva para a reação destemperada da Casa Branca: cúpula do Rio teve enorme êxito. Quais os novos passos para a criação de uma ordem financeira e monetária pós-ocidental? Onde estão os entraves? Como enquadrar a resistência dos Bancos Centrais?

Foi bem-sucedida a cúpula dos BRICS, diferentemente do que muitos temiam (inclusive eu). Preocupado com o que me parecia o risco de um insucesso, enviei sugestões e manifestei receios diversas vezes, tanto em público quanto em diálogos com integrantes do governo. Fiquei contente com os resultados e parabenizo as equipes do governo brasileiro e de outros países que contribuíram para o sucesso, notadamente a Rússia.

Não foi por acaso que Donald Trump passou a exorbitar outra vez, durante e depois da cúpula dos BRICS, pois ela confirmou que o grupo é, de fato, o principal contraponto no mundo à hegemonia dos Estados Unidos e seus aliados. Na verdade, os resultados da cúpula no Rio de Janeiro surpreenderam para melhor.

Na área econômico-financeira, algumas iniciativas importantes foram reafirmadas e desenvolvidas, algumas outras foram lançadas. E o trabalho continuará – espero – no segundo semestre da presidência brasileira. Deve-se notar que esses resultados positivos foram alcançados mesmo com problemas consideráveis que afetam o funcionamento dos BRICS. O artigo tratará desses problemas, de um lado, e das instituições e iniciativas financeiras do grupo, do outro.


Para não alongar demais o texto, deixo de lado as questões diplomáticas e políticas. Tratarei apenas das reações políticas e econômicas de Trump.

E é tão vasta a agenda econômica dos BRICS que nem poderei sequer abordar todas as iniciativas do grupo nesse campo.

Lula e Trump

Começo com os destemperos de Donald Trump. Foi interessante a declaração do presidente Lula, logo antes da cúpula, de que os BRICS precisam criar uma moeda alternativa para transações internacionais. Declaração destemida, pois ignora, e faz bem de ignorar, as repetidas ameaças de Trump contra os BRICS e qualquer país que atue para destronar o dólar da sua condição de moeda de reserva internacional.

Durante a nossa cúpula, Trump voltou a ameaçar: “Qualquer país que venha a se alinhar com as políticas antiamericanas dos BRICS terá de pagar uma tarifa ADICIONAL de 10%”, escrevendo em letras maiúsculas mesmo, e acrescentando que “não haverá exceções a esta política”.

Logo depois da cúpula, Trump fez declarações ainda mais agressivas, dizendo que os BRICS têm a intenção de “destruir o dólar” e que o grupo “foi criado para desvalorizar a nossa moeda”. E foi enfático: “O dólar é rei. Vamos mantê-lo assim. Se as pessoas quiserem desafiá-lo, podem. Mas terão que pagar um alto preço”. Estipulou, além disso, que as novas tarifas entrarão em vigor em 1º de agosto.

No dia seguinte, deu um coice ainda maior: enviou uma carta aberta a Lula em que anunciou uma tarifa extra de 50% sobre a importação de produtos do Brasil a partir de 1º de agosto, justificando esse tarifaço, entretanto, sobretudo com questões políticas internas nossas, em especial uma suposta caça às bruxas contra o ex-presidente Bolsonaro, que “deve terminar IMEDIATAMENTE” (mais uma vez em maiúsculas), além de reclamar das “centenas de ordens de censura do Supremo Tribunal Federal brasileiro, SECRETAS e ILEGAIS (outra vez em caixa alta), dirigidas a plataforma de mídia social dos Estados Unidos”. Reclamou, também, das barreiras tarifárias e não-tarifárias praticadas pelo Brasil. Curiosamente, os Estados Unidos têm expressivos superávits comerciais com o Brasil há muito anos, o que dá um caráter totalmente descabelado à carta de Trump.

Ao mesmo tempo, Trump disparou de novo a sua metralhadora giratória tarifária contra diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, alguns deles dos BRICS.


Foi perfeita a nota do presidente Lula em resposta a Trump. Chama atenção a diferença de qualidade entre a missiva de Trump e a réplica de Lula. A primeira totalmente aloprada (mais um sintoma da decadência dos EUA); a segunda, firme e bem fundamentada.

Lula acenou com retaliação, dizendo que o Brasil se reserva o direito de responder à luz da Lei brasileira de Reciprocidade Econômica, caso o tarifaço entre mesmo em vigor. Postura altiva do nosso presidente, pois a carta aberta de Trump já ameaçara com aumentos adicionais de tarifas em caso de o Brasil aumentar suas tarifas sobre as exportações dos EUA. E Trump ainda teve o desplante de escrever que, se Lula “eliminar as tarifas e barreiras não-tarifárias”, ele “talvez considere” ajustar a sua carta.

O que dizer de tudo isso? Bem, Trump chegou a falar, em ocasiões anteriores, em tarifas de 100% e até 200% sobre os BRICS por causa da suposta ameaça ao dólar. Progresso, portanto!

Enfim, foram novas grosserias do presidente dos Estados Unidos. Embora ele não tenha mencionado os BRICS na carta a Lula , é razoável admitir que o sucesso da cúpula do Rio tenha contribuído para a explosão de Trump.

Os BRICS e o sistema monetário e financeiro controlado pelo Ocidente

Diferentemente do que disse Trump nos dias recentes, repetindo várias declarações anteriores do mesmo naipe, os BRICS não pretendem atuar deliberadamente para destronar ou enfraquecer e muito menos “destruir o dólar”, mas sim criar alternativas aos sistemas internacionais dominados pelo Ocidente e centrados na moeda dos EUA. “Vamos com calma. Não somos contra o dólar, o dólar é que às vezes é contra nós”, disse o presidente Putin, sem ironia, em resposta a uma pergunta que tive a oportunidade de fazer a ele, em encontro anual do Clube Valdai em novembro do ano passado. Veja, leitor ou leitora, mesmo a Rússia, que está efetivamente em guerra com o Ocidente, adota até agora uma linguagem moderada em relação a propostas de desdolarização.

Mas a verdade é que o sistema monetário e financeiro internacional existente, controlado pelo Ocidente – isto é, o Fundo Monetário Internacional; o Banco Mundial e os bancos regionais de desenvolvimento tradicionais; a centralidade do dólar como moeda internacional; o esquema SWIFT de pagamentos transfronteiriços; as três principais agências de classificação de risco, entre outros elementos – apresenta claramente diversas deficiências graves. É excludente, ineficiente e não atende às necessidades dos países dos BRICS e do resto do Sul Global. Trata-se, no essencial, de um instrumento de poder e coerção para os países do Atlântico Norte e seus aliados em outras partes do mundo. Por isso, precisamos criar mecanismos alternativos e independentes do Ocidente, sem deixar de participar, na medida do possível e conveniente, do sistema atualmente existente.

Acredito que os BRICS, ou uma parte do grupo, continuarão a desenvolver, com paciência e profissionalismo, um novo sistema – não anti-Ocidental, mas pós-Ocidental, para lançar mão de uma expressão utilizada por Zhao Long, um economista chinês, em debate de que participei no Rio de Janeiro na semana passada.

Isso será feito ao longo dos próximos anos quer Trump queira, quer não. E é lamentável que o presidente dos Estados Unidos não saiba controlar minimamente os seus destemperos.

O peso do grupo BRICS

Trump tem motivos para temer os BRICS? Provavelmente sim. Fazem parte do nosso grupo todos os maiores países do Sul Global. Agora somos 10 membros plenos (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Indonésia, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos), além de outros 10 países parceiros. Os BRICS têm enorme peso econômico, demográfico e territorial. Considerando só os membros plenos, os BRICS ou BRICS+ respondem por nada menos que 50% da população do planeta (graças especialmente à Índia e à China), quase 40% do PIB mundial (graças à China principalmente) e 30% do território global (graças sobretudo à Rússia, à China e ao Brasil). Não é à toa que o nosso grupo atrai tanta atenção no mundo inteiro.

(Uma nota de rodapé: a Arábia Saudita foi convidada para ser membro pleno em 2023, mas ainda não respondeu, nem positiva, nem negativamente. A Argentina, convidada na mesma época, recusou. O que mostra, diga-se de passagem, que por motivos políticos nem todos os países do Sul Global estão prontos para aderir aos BRICS.)

Outra comparação relevante para os BRICS: quando se consideram os top-10 do mundo em termos de população, PIB (medido por paridade de poder de compra) e território, verifica-se o seguinte. Cinco dos BRICS (Índia, China, Indonésia, Brasil e Rússia) figuram na lista dos 10 maiores países em população. Os mesmos cinco BRICS estão entre os 10 maiores países em termos de tamanho da economia. E quatro deles fazem parte da relação dos 10 maiores em extensão geográfica (dos já mencionados, todos menos a Indonésia).

O Brasil está nessas três listas, ressalte-se, e por isso mesmo intitulei o meu penúltimo livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém. O problema, entretanto, é que muitos brasileiros cabem no quintal de qualquer um, inclusive e destacadamente Jair Bolsonaro, que Trump compreensivelmente tanto defende. Os americanos adoram vassalos. Mas não quero me desviar do assunto e volto aos BRICS.

Não devemos exagerar a importância real dos BRICS enquanto grupo

Cabe reconhecer, entretanto, que percentuais e listas como os acima mencionados podem dar uma ideia exagerada do peso real prático dos BRICS enquanto grupo. Há algumas dificuldades que ainda impedem os BRICS de exercer papel correspondente a seu peso relativo no mundo e isso vem prejudicando, como era de esperar, a presidência brasileira do grupo em 2025. Sem pretender esgotar o assunto e nem mesmo listar todas essas dificuldades, vou falar um pouco de três delas: uma de natureza conjuntural – o risco de encurtamento da presidência brasileira; e outras duas, mais estruturais e interligadas, que devem persistir no que resta de 2025 e nos anos seguintes – os riscos de expansão excessiva dos BRICS e os riscos de paralisia do grupo por causa da nossa arraigada tradição de decidir por consenso.

  1. Risco de encurtamento da presidência brasileira

O governo brasileiro cometeu o erro de marcar a cúpula para o meio do ano, algo muito pouco usual e que arrisca reduzir a presidência brasileira dos BRICS a um semestre apenas. O argumento, muito fraco, é que o Brasil sedia a COP30 em novembro e que o país não teria condições de organizar dois eventos internacionais em datas próximas. Para lá de questionável. O Brasil, sendo como é um dos principais países do mundo, tem sim como fazer isso, se não pensar pequeno. E, depois, convenhamos, a COP30 não deverá alcançar resultados práticos relevantes e será provavelmente apenas mais uma ocasião para discursos e slogans simpáticos. Já os BRICS constituem o grupo de países que melhores condições tem de modificar o quadro internacional.

Esse problema foi mitigado no Rio de Janeiro pelo fato de ficarem previstas na Declaração dos Líderes e em outros documentos, diversas reuniões ministeriais, de bancos centrais, de xerpas e assessores ao longo do segundo semestre. Faltou, porém, até onde pude perceber, um gancho fundamental – marcar uma reunião dos líderes dos BRICS para novembro por ocasião da cúpula do G20 na África do Sul, em Joanesburgo, para a qual convergiriam as negociações que ocorrerão no segundo semestre. E não venham me dizer que isso é impossível. Não é nem difícil. Os líderes do grupo já fizeram diversas reuniões desse tipo, a primeira por iniciativa de Dilma Rousseff em 2011, e várias depois, inclusive no governo Bolsonaro, com comunicado público e tudo. São simples de organizar, e eu sei perfeitamente disso, pois participei desse processo em vários anos. Fazíamos reuniões em salas pequenas, com cerca de 25 a 30 pessoas presentes, os cinco líderes e mais alguns assessores. Hoje, é um pouco mais complicado, pois o número de países membros dobrou. Mas é só reduzir o número de pessoas que cada líder traz consigo, permitindo uma reunião menor e mais íntima, como ocorria antes da expansão do grupo. Ressalte-se que esse encontro dos líderes não é uma segunda cúpula. com toda a parafernália das cúpulas, mas um encontro que, embora mais informal, costuma terminar com um comunicado do qual podem constar assuntos importantes.

Por exemplo, as negociações do Arranjo Contingente de Reservas (ACR), o fundo monetário dos BRICS, foram lançadas, sob liderança do Brasil e da China, e mais do Brasil do que da China, numa reunião desse tipo que ocorreu em 2012, em Los Cabos, à margem da cúpula do G20 no México. E devo dizer, entre parênteses, que essas negociações só foram lançadas naquele momento por causa do empenho da presidente Dilma, que não sossegou enquanto não foram vencidas as resistências da Índia. (Um relato dessa negociação difícil e até tumultuada em Los Cabos pode ser encontrado em O Brasil não cabe no quintal de ninguém, 2ª edição, páginas 256 a 261.)

Note-se que dos 10 membros atuais dos BRICS, quatro países – Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã não fazem parte do G20. Mas isso não é problema. Bastaria a África do Sul convidar esses quatro países para vir a Joanesburgo, não para participar da cúpula do G20, mas para se encontrar com os demais líderes dos BRICS – um encontro que pode ser, aliás, mais importantes do que o do G20, agrupamento que está praticamente paralisado pelo agravamento do quadro geopolítico mundial e pela confrontação entre EUA e Europa, de um lado, e China e Rússia, do outro.

  1. Riscos decorrentes da expansão dos BRICS e do modo de decidir do grupo

Não foi anunciado nenhum novo convite para a entrada de novos países, como membros plenos ou como parceiros. Bom ponto! O grupo já ficou grande demais, a expansão por pressão da China foi apressada e mal planejada. Os critérios de escolha dos novos países não foram bem definidos. Faltou, por exemplo, assegurar o compromisso dos novos membros com princípios já consolidados do grupo, o que parece já estar tumultuando as negociações internas dos BRICS.

Hora de sustar qualquer expansão adicional. A razão é que um grupo maior e mais heterogêneo tende a ter dificuldade de tomar decisões práticas, especialmente se entrarem países muito vulneráveis às pressões econômicas e políticas do bloco ocidental.

Tanto mais que os BRICS –ponto fundamental e pouco conhecido – são muito agarrados à tradição de decidir por consenso, entendido rigidamente como unanimidade. Assim, cada país individual tem poder de veto, o que dificulta o avanço em temas controvertidos. Obviamente, quanto maior o grupo, mais difícil fica alcançar consenso. Já era difícil quando tínhamos apenas cinco países. Posso dar o meu testemunho de como sofríamos para alcançar consenso mesmo com só cinco países. Com 10, as dificuldades crescem. Se o número de membros plenos aumentar para 15 ou 20, o grupo corre o risco de se tornar inoperante, uma espécie de talk shop, uma instância para discursos e proclamações, não para decisões de ordem prática.

Quando prevalece a exigência de consenso, repito, cada país membro tem poder de veto, especialmente os maiores, mas também os menores. É uma receita para paralisia. A Índia, por exemplo, se vale desse noddo modo de decidir para bloquear propostas em várias áreas e, particularmente, iniciativas monetárias e financeiras que possam ferir interesses dos Estados Unidos, país com o qual ela deseja manter proximidade como contrapeso à China, sua tradicional adversária. Esse comportamento da Índia já se notava há muito tempo, mas se intensificou no governo Modi e, mais ainda, acredito, com a volta de Trump à presidência e suas repetidas ameaças.

A solução é permitir que certas iniciativas possam ser levadas adiante por um subgrupo dos BRICS, em base voluntária, ficando aberta a porta para aqueles que não desejem participar desde o início. A cúpula do Rio reafirmou essa possibilidade, dando sequência ao que ocorreu na cúpula de Kazan, na Rússia, em outubro de 2024. Agora é colocar em prática.

Apesar das dificuldades, houve progresso considerável no Rio

Não obstante todas essas dificuldades, a presidência brasileira alcançou resultados significativos na área financeira. Explico brevemente alguns deles, sem seguir uma ordem de importância ou prioridade.

Primeiro resultado: a Declaração dos Líderes foi impecável nas orientações que deu às duas principais iniciativas financeiras dos BRICS – o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR).

O NBD, que eu ajudei a fundar, é de longe a mais importante das duas. Foi criado, recordo, para ser um banco do Sul Global para o Sul Global, servindo como de alternativa ao Banco Mundial e aos bancos regionais de desenvolvimento. Ainda não conseguimos chegar lá. A Declaração dos Líderes frisou corretamente (“we strongly support”) a expansão adicional do número de países membros do NBD, o que é indispensável para que ele seja, de fato, um banco global, como planejávamos desde o início. Depois de 10 anos de existência, o NBD tem apenas 11 países membros. A ex-presidente Dilma, que atualmente preside o banco, está empenhada nessa questão e já teve algum sucesso, trazendo a Argélia, além da Colômbia e do Uzbequistão, novos membros anunciados na cúpula do Rio.

Além disso, a Declaração recomendou, com toda razão, que o NBD realize mais operações com moedas nacionais dos países membros. Também aqui o banco progrediu pouco nos seus 10 primeiros anos e continua predominantemente dolarizado tanto no lado do ativo como do passivo. Dilma Rousseff está trabalhando para elevar para 30% a participação das moedas dos países membros do banco nas suas operações.

Falta, ainda, melhorar a) a transparência e a comunicação do NBD, que é inferior à do Banco Mundial e do FMI; b) preencher posições importantes que estão vagas (por exemplo, a de economista-chefe do banco); e c) garantir que o NBD sempre respeite rigorosamente as suas regras de governança, algo que infelizmente não tem ocorrido. Mais importante ainda: a qualidade e efetividade dos empréstimos do NBD precisam provavelmente melhorar – se bem que não se sabe exatamente como esse aspecto crucial está evoluindo, uma vez que, como mencionei, não há suficiente transparência do banco. O segredo a respeito levanta a suspeita de que nem tudo está indo bem nesse aspecto.

O ACR – cuja negociação foi liderada por minha cadeira no FMI, sob orientação do ministro Guido Mantega – avançou nos seus 10 primeiros anos bem menos do que esperávamos e menos do que o NBD, tendo ficado quase totalmente congelado pelo conservadorismo dos nossos bancos centrais. Ele foi concebido por nós, recorde-se, para servir como alternativa ao FMI, objetivo que ainda está muito distante.

A Declaração dos Líderes dos BRICS acerta em cheio quando frisa a conveniência de desdolarizar um arranjo que é 100% dependente do dólar. Acerta, também, quando pede que os novos membros dos BRICS possam ser incluídos como membros do ACR.

Não me espantaria, entretanto, que os bancos centrais dos cinco países fundadores do ACR (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ou alguns deles, estejam fazendo corpo mole com esses dois assuntos. Cabe às autoridades políticas, especialmente às presidências dos países e seus ministérios da finanças, garantir que os objetivos dos líderes do grupo sejam alcançados sem demoras desnecessárias.

Faltou na Declaração dos Líderes, menção a alguns outros pontos indispensáveis para o funcionamento do ACR. Por exemplo, a necessidade de ampliar o valor total do arranjo, que é pequeno demais para permitir que ele funcione como alternativa ao FMI. E a necessidade de desvinculá-lo gradualmente do Fundo, uma vez que apenas 30% do valor da quota de cada país podem ser utilizados sem a existência de um acordo de alta condicionalidade com o FMI. Isso defeats the purpose, obviamente. Para o leitor ou leitora ter uma ideia do ridículo de certos posicionamentos, o Banco Central do Brasi nas negociações que levaram à criação do ACR chegou a defender 100% de vinculação ao FMI, causando espanto geral.

Para permitir que a parcela livre, desvinculada do FMI, possa aumentar gradualmente para além dos 30% atuais, chegando no futuro a 100%, isto é, à desvinculação total, é essencial que se constitua uma Unidade de Monitoramento Macroeconômico, como está previsto no Tratado que constituiu o ACR, assinado em 2014. Mais de 10 anos depois, pouco ou nada foi feito para criar essa unidade.

Os chineses costumam pleitear que ela seja localizada em Xangai, no prédio do NBD. Não é má ideia, uma vez que facilitaria a sinergia entre as duas instituições. Porém, não é a melhor alternativa, pois transformaria Xangai na nova Washington, sede do banco e do fundo monetário dos BRICS.

Uma ideia melhor, do ponto de vista do Brasil e de outros membros dos BRICS, seria sediar a nova unidade dos BRICS no Rio de Janeiro. O prefeito Eduardo Paes manifestou a vontade de acolher um eventual secretariado do grupo. Uma forma de começar seria encontrar um espaço para estabelecer essa nova unidade. (Não precisa ser grande, pois não seria grande o número requerido de economistas e outros funcionários.)

Percebo, leitor ou leitora, que o artigo está ficando longo demais. Fiquei empolgado com o sucesso da presidência brasileira no primeiro semestre de 2025. Apresso-me então a concluir.

Os BRICS não se limitaram a tratar dos mecanismos financeiros já existentes, o NBD e o ACR. Lançaram ou reforçaram diversas iniciativas financeiras novas ou recentes. Não posso deixar de pelo menos mencioná-las. Destaco as seguintes : a) o uso crescente de moedas nacionais em transações entre os países (bypassando o dólar); b) a construção de uma plataforma de pagamentos internacionais alternativa ao Swift (que é a plataforma controlada e manipulada pelo Ocidente); c) a criação de um esquema de garantias multilaterais no âmbito do NBD; d) a criação de uma bolsa de mercadorias alternativa à de Chicago; e e) de mecanismos para melhorar capacidade dos nossos países de oferecer seguros e resseguros. Em todas essas áreas, os EUA e outros países do Ocidente manipulam, distorcem e fazem uso político, no pior sentido da palavra, dos instrumentos existentes. Tudo isso foi explicado, em linhas gerais, na Declaração dos Líderes e em outros documentos da cúpula do Rio.

Por último, menciono um assunto que também está próximo do meu coração – a reforma do FMI, instituição em que estive por oito anos, como diretor executivo pelo Brasil e outros 10 países. O documento apresentado na cúpula, “BRICS Rio de Janeiro Vision for IMF Quota and Governance Reform”, está excelente. Além de reiterar nossas posições tradicionais em matéria de quotas e votos (que são nos tempos atuais essencialmente inalcançáveis), o documento especifica, o que é mais importante na prática, alguns objetivos mais viáveis porque melhoram o FMI, mas não tocam nas mudanças de governança bloqueados pelos EUA e pela Europa. Por exemplo, a criação de um quinto vice-diretor na Administração do Fundo, alocando essa nova posição para nacionais de países do Sul Global. Outro exemplo: a defesa do aumento dos votos básicos, o que favorece países pequenos, inclusive vários no nosso grupo no FMI, e que dentro de certos limites é perfeitamente possível (isto é, desde que não ameace o poder de voto de pelo menos 15%, que dá aos EUA possiblidade de exercer veto em diversas decisões fundamentais, aquelas que exigem supermaioria de 85%).

E a nova moeda de reserva?

Faltou um ponto central na Declaração dos Líderes: a criação de uma nova moeda de reserva, apoiada pelo presidente Lula. Esse é o passo mais importante, mas enfrenta resistência cerrada da Índia.

Além disso, os nossos banco centrais também atrapalham chegam a ponto de se dar o direito de interferir em questões geopolíticas! O Banco Central do Brasil costuma ser um dos piores. Muito independente (em relação ao governo eleito, mas não ao mercado financeiro), o nosso Banco Central se comporta frequentemente, nas negociações do grupo, como se fosse um país separado – um 11º BRICS. Isso acontecia na minha época e continua acontecendo agora.

Falta, portanto, enquadrar o Banco Central.

Ressalto, para terminar, que foi muito precisa a declaração do presidente Lula a esse respeito. O que ele disse, reparem bem, foi que a nova moeda serviria para transações internacionais.

Diversos economistas russos, chineses e brasileiros, estão trabalhando em alternativas para chegar a uma nova moeda. Eu mesmo desenhei um caminho, que talvez não seja o melhor. Não vou abordá-lo de novo. Queria frisar um ponto apenas: uma nova moeda dos BRICS, ou de um subconjunto de países dos BRICS, não seria uma moeda única, com um banco central comum, como existe na Europa. Nenhum dos economistas que participam dessa discussão tem isso em mente. É por ignorância ou má-fé daqueles que querem obstruir o processo que esse espantalho aparece volta e meia. Uma nova moeda, se vier a ser criada, seria uma moeda digital, paralela, para fins de transações internacionais e detenção de reservas. Desempenharia todas as funções clássicas de uma moeda – meio de pagamento, unidade de conta e instrumento de reserva – sem entretanto substituir as moedas nacionais dos países participantes e sem criar um banco central comum.

Vamos discutir essas alternativas, sem medo e de modo profissional! O resto do Sul Global espera avanços dos BRICS nessa área crucial. O sistema monetário e financeiro internacional, dominado pelos EUA e seus aliados (ou vassalos), não será reformado de forma fundamental e corre até o risco de entrar em colapso.

Trump pode espernear à vontade e fazer muitos estragos, mas não escapará de apressar, por incompetência e descontrole, o declínio do Império Americano. Como nas tragédias gregas, a tentativa dos protagonistas de fugir a seu destino só faz assegurar a sua realização.

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A crise do Ocidente e o desafio dos Brics

Declínio da ordem eurocêntrica é político, econômico e ético. E mesmo heterogêneo, o novo bloco tem algo decisivo em comum: rejeitar o domínio colonial. Por isso, irrita Trump. Por isso, é preciso cultivá-lo e caminhar com ele

O texto a seguir é o prólogo do dossiê BRICS+ e o futuro soberano do Sul Global, produzido pela Rede Brasileira pela Integração dos povos – Rebrip. A obra é composta de dez artigos, que tratam de temas como Cooperação em Saúde Global; Comércio, Investimento e Finanças; Mudança do Clima; Governança da Inteligência Artificial e Estrutura e Coesão dos BRICS. Pode ser baixada, na íntegra,

Por Graciela Rodriguez | Imagem: Luis Zerbini, A primeira missa (2014)

Em evento recente, no âmbito do G20 no Rio de Janeiro, o professor Ha-Joon Chang, autor do famoso livro Chutando a escada1, comentou com surpresa que estava o tempo todo ouvindo os expositores e outras pessoas falando em crise; na crise civilizatória, econômica, climática, alimentar, de saúde, e mais. “Se vocês fossem ao Oriente e perguntassem às pessoas sobre a crise, elas diriam, ‘de que crise você está falando?’”

Em todo caso, é o chamado Ocidente Coletivo – nome informal dado aos países que foram aliados dos EUA durante a Guerra Fria, entre 1947 e 1991, principalmente da Europa – que está submerso numa crise profunda, que vai além das cíclicas crises a que o capitalismo nos têm acostumado.


Na verdade, a ordem mundial atual, surgida depois da Segunda Guerra Mundial, está-se desmoronando, e o deterioro provoca o caos que sentimos na região, que por sua vez impacta o conjunto do planeta de diversas formas, dada a importância hegemônica do Ocidente, tanto econômica quanto militar.

As instâncias institucionais multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e outras estão deslegitimadas, junto com princípios tais como o respeito pelas fronteiras dos países, a igualdade e autonomia dos estados, o princípio de não ingerência, o direito de autodeterminação dos povos. Todas, premissas basilares do sistema normativo e do direito internacional, princípios que sustentariam o funcionamento considerado pacífico do mundo, ou dito de outro modo, que impediriam uma terceira guerra mundial. Isto considerado de um modo geral, apesar das “guerras eternas” promovidas pela potência hegemônica em diversos países, quase sempre em cada um isoladamente, na velha lógica do “dividir para conquistar”. De fato, nas últimas décadas, os EUA foram se transformando na “polícia do mundo”, especialmente a partir da queda da União Soviética e do fim da Guerra Fria, consolidando esse papel a partir de 2001 e sua “guerra ao terrorismo”.

Por sua vez, a globalização corporativa veio desde os anos 1980 impondo a hegemonia econômica norte-americana e a lógica do livre comercio e do estado mínimo, promovendo também o pensamento único e o “fim da história” a partir do modelo neoliberal.

Entretanto, todas essas receitas deram resultados muito diversos aos prometidos pela globalização produtiva e acabaram provocando fortes alterações na geopolítica global, multiplicando as crises financeiras a partir de meados dos anos 90, especialmente a partir dos avanços sem regras do sistema financeiro internacional. Concomitantemente, o desmonte do sistema produtivo ocidental pela deslocalização das empresas em busca do barateamento do emprego, e da entrada do hegemón em guerras destrutivas em busca de territórios e recursos, ampliou e aprofundou as crises, especialmente em 2008, quando a explosão do sistema financeiro norte-americano fez a crise se espalhar pelas bolsas do mundo inteiro. No meio desse turbilhão surge o BRIC em 2009, depois de ter contribuído com as reservas dos países-membros para superar a crise, e já formando o G20 como parte dos países convidados pelo G7, diante da ingovernabilidade do sistema econômico internacional.

Porém, o BRIC (posteriormente BRICS, com a incorporação da África do Sul) irá além desse primeiro momento de intervenção para contribuir com a saída da crise, colocando desde o começo o desafio de superar o sistema hegemônico unipolar, mostrando sua vocação de multilaterização do cenário mundial e de promoção da integração multipolar.

A começar porque eles, desde o início, reconheceram a importância de empenhar esforços conjuntos para o avanço da diplomacia multilateral e um “sistema econômico justo e equilibrado”2 reforçando a necessidade de resolução pacífica de conflitos e reafirmando a importância do diálogo em matéria de segurança e paz mundiais, como também a cooperação Sul-Sul.3

Contexto no Norte Global


Por se tratar de um resumo apertado, para prologar este dossiê organizado pela REBRIP, vamos tentar comentar aqui a nossa perspectiva sobre o BRICS e sua atual importância no contexto da ordem internacional neoliberal, que desde 2009 só vem mantendo uma crise profunda e com evidências notórias de declínio.

Em 2025, encontramos os EUA em crise e com uma dívida ingovernável de mais de 120% do seu PIB, provocando incerteza político-económica no próprio país e no mundo. A chegada de Trump à Casa Branca só tem tornado a situação ainda mais conflituosa, acrescentando novos elementos à guerra tarifária que os EUA vêm promovendo com a China há anos. Algumas de suas propostas remetem à quebra de pilares do convívio internacional assentados no ultimo século – de respeito à integridade dos países e suas autonomias –, como no caso da anexação da Groenlândia, do Canal do Panamá e do vizinho Canadá, exemplos de como vem-se provocando uma grande turbulência global.

Já na Europa, a situação também mostra enorme instabilidade, e a perspectiva de continuidade da guerra na Ucrânia, apesar das tortas tentativas de Trump de levar à frente um cessar fogo, só multiplicam a situação de crise e fragilidade da região. Uma Europa que tomou para si uma guerra por representação dos interesses norte-americanos do governo Biden, de avançar na fronteira leste europeia com a Rússia, apesar dos alertas e até dos acordos assinados4 desde 2014, dos conflitos no Maidan, e da perspectiva de entrada da Ucrânia na OTAN. Ou seja, uma guerra impossível de ser vencida pela Ucrânia, e que deixou milhares de mortos e feridos. Uma tragédia com consequências gravíssimas para a economia e bem-estar europeus, que segue porque não se reconhece que é uma guerra perdida, e pela arrogância da dirigência europeia em continuar um conflito completamente rejeitado por sua população, com um custo de 800 bilhões de euros para a criação de um parque armamentício próprio, que possa substituir o fim da colaboração norte-americana para a OTAN enfrentar a continuidade dessa guerra.

Tudo isso somado à crise instalada na indústria europeia, à fragilização do sistema energético e às inúmeras consequências sociais e climáticas dessas escolhas. Sem falar no legado da destruição na Ucrânia: maltrato aos migrantes nas fronteiras da “Europa fortaleza” com o afrouxamento da defesa dos direitos humanos e até o abandono dos ideais humanitários explicitado no apoio a Israel, autor do genocídio ainda em curso em Gaza.

Em síntese, um Norte global que tem demonstrado a incapacidade do multilateralismo ocidental em lidar com as crises sistémicas do planeta: de saúde, económica, social e ambiental, levando-nos à atual descrença de muitas populações na política e num futuro melhor.

Importância do BRICS

Por outro lado, nos últimos 15 anos, vimos crescer simultaneamente outro processo: o do avanço do BRICS, agora um bloco se expandindo de forma significativa, com a entrada de mais 6 países5, formando o chamado BRICS+, com 11 países e uma longa fila de solicitações de adesão. Isso, no contexto de surgimento e ascensão do chamado “Sul Global”, sendo este um conceito em debate que inclui características como o princípio de cooperação com benefícios mútuos, que dá fundamento a uma perspectiva socioeconómico diversa da hegemônica, um espaço de resistência aos projetos coloniais. Um construto alternativo, que questiona as dinâmicas de poder existentes, buscando promover uma ordem internacional mais justa. Essas características do que agora chamamos Sul Global já se encontraram de formas similares na história recente com outros nomes, como países não alinhados, ou Terceiro Mundo, trazendo sempre a lógica de quem sofreu situações coloniais.

O BRICS constitui-se nesse contexto, mas agora enquanto “países emergentes”, com a perspectiva de se transformarem nas principais economias do mundo até 2050, com grandes populações e áreas territoriais extensas, somada a uma presença de peso em seus continentes. Isto evidentemente traz novos desafios, chances e caminhos para seu funcionamento e desempenho.

O crescimento acelerado da China nesses poucos anos tornou o país uma potência econômica e tecnológica, que tem inclusive arrastado diversos países do sudeste asiático numa trilha de multiplicação das opções produtivas locais e regionais e de avanço nas tecnologias digitais. A Índia, com enormes diferenças políticas com seu grande vizinho do norte, tem caminhado numa perspectiva de convívio pacifico, que o diálogo político no BRICS vem ajudando até o momento a manter. Por sua parte, a parceria estratégica da Rússia com seu sócio mais importante, a China, tem-se traduzido em acordos de interação estratégica e associações de interesse mútuo, que ajudaram a suportar as milhares de sanções econômicas recebidas dos EUA.

Já África do Sul e Brasil, apesar de serem sócios menores, têm tido um papel qualitativo fundamental para criar as bases democráticas de processos importantes, como a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Acordo de Reservas Contingentes (CRA), além de aproximar amplas regiões, África e América Latina, onde são, respectivamente, polos continentais.

Entretanto, não só as transformações das condições econômicas desses países foram importantes para o surgimento em 2009 desse novo bloco internacional. Mas também as condições políticas criadas pelas repetidas crises econômico-financeiras, com foco inicial no ocidente, e pelo declínio político e ético do Ocidente Coletivo – EUA e seus aliados na OTAN – com as inúmeras guerras acontecidas no Sul Global, e que perduram até hoje, (escalando em truculência com o genocídio em Gaza). Ambas as causas, econômicas como também as razões ético-políticas, se entrelaçam condicionando-se mutuamente.

Condições geopolíticas da crise sistêmica

Esse é o momento complexo que vivenciamos atualmente, acirrado com a eleição de Trump e o avanço da ultradireita neoliberal.

De fato, o novo presidente norte-americano tem-se mostrado bastante disruptivo. Entretanto, sua verborreia não consegue ocultar que as propostas de aumento seletivo das tarifas de importação seguem uma linha de guerra comercial já desenhada por governos anteriores, e também que há continuidade no processo de fragilização das instituições multilaterais (Castilho, 2025). Mas possivelmente, a maneira de fazer os anúncios traga o estilo shock com o propósito de acelerar a “reciclagem global” como conceituado por Varoufakis6.

A essência deste mecanismo de reciclagem global é simples: desde a década de 1970, os deficits dos Estados Unidos proporcionaram a Alemanha, Japão e posteriormente, China, a demanda por produtos de suas fábricas. Em troca, a União Europeia, Japão e, posteriormente, China enviaram seus lucros acumulados para Wall Street e seu subalterno, a City de Londres, para que fossem reciclados no setor rentista estadounidense: dívida privada e pública, financeirização parasitária com investimentos em ações e bens imobiliários.

Esse mecanismo, que tem gerado deficits comerciais crescentes e uma gigantesca dívida nos EUA, ao mesmo tempo tem permitido o acumulo de renda na Europa do norte e no Leste asiático. E agora parece que o limite chegou, e Trump não tem feito mais que escancarar a perspectiva das elites americanas a seus principais aliados no mundo, abandonando seus sócios, que parecem agora atordoados e oscilando entre a condenação e a permanência ao lado de seus algozes.

Acreditamos que o importante agora é perceber que isso está possibilitando uma janela de oportunidade para nos repensar enquanto parte do Sul Global, procurar recuperar a economia produtiva do ponto de vista das cadeias de produção que precisam ser reorganizadas e realizar a pendente tarefa da industrialização, com inovação e bem-estar, envolvendo a região, como fez a China com seus vizinhos.

O Brasil no BRICS, na reciprocidade

Quando se tem pela frente um cenário global com tanta incerteza e turbulências, ter clareza sobre o rumo a seguir, em relação ao modelo produtivo e de país que se constrói, permite contar com um alicerce firme a partir do qual é possível reagir frente aos desafios e oportunidades. Diante da quebra das cadeias produtivas explicitada após a pandemia, o atual rearranjo global da produção se impõe, e permite vislumbrar oportunidades para a retomada a médio e longo prazo da reindustrialização brasileira, acompanhando o avanço tecnológico e a urgente necessidade da transição para uma economia de baixo carbono. No caso do Brasil, o atual contexto interno parece ainda insuficiente para nos permitir aproveitar essa oportunidade externa que se apresenta, a menos que o país tome as decisões políticas que se requerem neste momento.

O BRICS faz parte dessa oportunidade que permite vislumbrar uma perspectiva de mudança nos rumos da atual e desigual divisão internacional do trabalho, que nos empurra necessariamente ao modelo primário exportador, ambientalmente insustentável, com escassa criação de empregos e concentração da renda, e sua consequente desigual distribuição social da riqueza. Temos agora a possibilidade de negociar no BRICS um lugar de trocas de inovação e tecnologia que nos permita caminhar para uma matriz produtiva com valor agregado, apoiando as pequenas e medias empresas com maiores condições de criar emprego, e ampliando o enorme potencial da bioeconomia e das fontes de energia renováveis.

E essa oportunidade que vem do BRICS aparece tanto por razões geopolíticas, de construir um mundo multipolar, anti-hegemonista e que permita avançar numa distribuição do poder global a partir de múltiplos atores, como também a partir das possibilidades de facilitação das transferências de tecnologia e de investimentos capazes de alavancar a sustentabilidade do crescimento e a capacidade de superação das enormes desigualdades brasileiras e da região. Essa chance depende do diálogo construtivo e do peso da história de povos que vêm buscando superar as experiências coloniais e o “choque de civilizações” promovido pelo ocidente.

A democracia liberal e o multilateralismo ocidental têm fracassado na sua tarefa de promover a paz e a prosperidade. Por isso é preciso caminhar para a coexistência civilizacional da humanidade, o que inclui a aceitação das diferenças e da autodeterminação dos povos.

O BRICS, agora aumentando o número de países e seu alcance global, é um grupo com visões e perspectivas políticas, culturais e civilizacionais muito diversas, mas empenhadas em trabalhar juntas na diversidade, em prol da melhoria da prosperidade global.

Apontamentos para a construção de futuros possíveis do BRICS+

Apesar de certas visões críticas e resistentes às mudanças no cenário internacional, que querem ver um antiocidentalismo no BRICS+, o bloco vem-se firmando como um farol que busca iluminar um mundo multipolar, de respeito às diferenças históricas, políticas, econômicas e culturais que nos desafiam no mundo globalizado.

Por isso, temos aqui questões fundamentais a serem refletidas.

– Em primeiro lugar, o BRICS é uma construção do Sul Global, e portanto, podemos dizer que, em essência, está formado por países que foram colonizados, “não ocidentais” na sua maioria, mas nem por isso antiocidentais. Entretanto, é necessário superar a narrativa anti-Brics, pelos muitos clichés e preconceitos que a rodeiam. Pelo contrário, o BRICS vem sendo construído com uma estratégia não confrontacional, como expressado diversas vezes pelo embaixador Celso Amorim e outros líderes, aceitando as diferentes visões e buscando um mundo de paz e mais justo, e que fortaleça o desenvolvimento do Sul Global, superando o subdesenvolvimento, “herança maldita” do colonialismo.

Um multilateralismo que também permita o funcionamento das instituições multilaterais necessárias – existentes e novas – que possam ser reformadas e atualizadas a partir de regras de convivência internacional, que condenem a fome, a pobreza, o racismo, o genocídio, e todas as formas de neo-colonialidade, desigualdades e discriminações. Destacamos inclusive que a luta pela autodeterminação Palestina em Gaza e Cisjordânia, fazendo frente ao brutal genocídio praticado por Israel com o explícito apoio do Ocidente, tem que se tornar bandeira simbólica da própria luta do Sul Global.

Esse é, talvez, o maior desafio, e por isso para nós, sociedade civil brasileira, é da ordem do essencial buscar o convívio harmonioso entre civilizações milenares, prevalecendo como prática permanente o combate e superação das desigualdades e mazelas que resistem em todas as nossas sociedades. A proximidade cultural com EUA e Europa, tem de fato nos prejudicado, pois ela ajudou a perpetuar o colonialismo político e cultural que foi a patina hegemónica da submissão econômica de América Latina e outras regiões aos países do Norte Global.

Assim, e apesar de fortemente moldada pelo ocidente, nossa rica e milenar cultura indo-americana conseguiu (e ainda consegue) enriquecer-se com as contribuições das culturas africanas, e posteriormente de outros povos migrantes, e também fez e pode continuar a fazê-lo com as culturas asiáticas. Só o maior conhecimento recíproco e as trocas culturais poderão frutificar na necessária cooperação internacional de benefícios mútuos, para construir um mundo civilizado que, pela primeira vez, experimenta com a comunicação online a maior aproximação global até agora conhecida.

– Em segundo lugar, acreditamos que o BRICS precisaria ter como objetivo harmonizar as relações entre os países do Sul Global, utilizando a cooperação multidimensional e a “conectividade económica” com recursos naturais, financeiros, tecnológicos e com liderança estatal, fatores que lhe proporcionam a autonomia necessária para o desenvolvimento com equidade e justiça ambiental, superando a crise da qual falávamos e que surpreendia ao professor Ha-Joon Chang.

Existe no Sul uma desconfiança no sistema económico hegemonizado pelo Norte Global, especialmente pelo desequilíbrio dos EUA e as respostas tarifárias exageradas impostas por Trump, que até extemporaneamente decretou “a morte do BRICS”. Alguns analistas enxergam nos EUA um certo declínio agressivo que se evidencia no uso de mecanismos de punição coercitivas – como as inúmeras sanções impostas à Rússia, mas também a outros estados –, utilizados como armas econômicas para impedir o crescimento de países rivais, avivando esse clima de desconfiança, e criando fortes turbulências.

Daí que a perspectiva de resposta do BRICS tenha-se fortalecido no questionamento ao sistema monetário hegemônico, buscando alternativas e soluções tais como o uso de moedas nacionais mútuas nas transações comerciais, acordos de cooperação em inovação e tecnologia (para enfrentamento das mudanças climáticas, de combate à fome e de iniciativas em saúde global e local), trocas em processos industriais e de transição energética e nas áreas de comunicação, dentre outras.

– Em terceiro lugar, tem sido levantada a questão da organização do BRICS, e de aperfeiçoamento de sua institucionalidade. Até agora, o bloco tem funcionado sem secretariado nem estrutura permanente, como uma rede descentralizada.

Entretanto, e apesar de certa necessidade de institucionalização e ao menos de centralização da informação, consideramos que

num espaço multilateral, resulta mais atraente esse formato flexível que não exija uma mesma medida para todos. Nem regras rígidas que busquem avançar ideias como a moeda única, que acabaria sendo centrada na China pela maior força e tamanho e à qual a Índia provavelmente se oporia, ou utilizar um sistema de pagamentos no qual alguns países se sentiriam presos.7

Justamente daí surge parte da efetividade do BRICS, desse formato mais flexível, que tem permitido os 15 anos de andamento e do forte interesse de adesão de um grande número de países. O que aliás, já significa um sucesso do BRICS por seu valor simbólico de aglutinação dos anseios de multilateralismo existentes no Sul Global.

Finalmente, para concluir com esta introdução ao dossiê, queremos enfatizar a necessidade de o governo brasileiro comprometer-se com o aprofundamento e ampliação da participação social no Conselho Civil do BRICS, e de fato em todo âmbito negociador da PEB – Política Externa Brasileira. Nesse sentido, a REBRIP demanda a criação do CONPEB – Conselho Nacional de Política Externa Brasileira, de caráter consultivo e inclusivo da diversidade da sociedade brasileira em seu conjunto, para dar maior solidez às ações domésticas e internacionais, e ser o canalizador dos processos participativos, a partir da autonomia da sociedade civil, e com respeito à política externa como política pública nacional.

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Colômbia: como empresas sabotam reforma da saúde

Hegemonizado pelo setor privado, sistema de saúde do país vive crise – enquanto governo tenta criar um “SUS”. Pressionando contra a reforma, empresas chegam a negar acesso de pacientes ao dolutegravir, importante remédio de HIV cuja patente foi quebrada por Petro

Nos últimos meses, uma crise do sistema de saúde da Colômbia tem sido amplamente exposta ao público, por meio de inúmeras denúncias de pacientes a quem é negada a entrega de medicamentos e o acesso aos serviços de saúde. Essa visibilidade não é acidental: ela ocorre no contexto de debate sobre a reforma da saúde proposta pelo governo de Gustavo Petro. Investidores das grandes Empresas Administradores de Planos e Benefícios (EAPB, responsáveis por administrar os recursos financeiros para a atenção em saúde; entenda mais abaixo), multinacionais farmacêuticas e alguns setores políticos se opõem à mudança, pois perderiam os lucros exorbitantes que atualmente obtêm. 

Usando seu poder econômico e um lobby agressivo, esses grupos estão manipulando a opinião pública e pressionando o Congresso Nacional para bloquear qualquer tentativa de mudança que ameace suas riquezas, mantendo um sistema injusto e excludente que beneficia apenas uma minoria, em detrimento da saúde da população colombiana.

Durante o governo Petro, foram feitas denúncias públicas que expõem as manobras perversas desse sistema de saúde. Houve também intervenções em diferentes EAPB, tanto do regime contributivo como do regime subsidiado, realizadas porque essas entidades supostamente não tinham como operar. Descaradamente, essas empresas têm exigido do governo a liberação dos recursos “necessários” para seu funcionamento. A resposta de Petro foi que “seu Governo não pagará as dívidas acumuladas pelas EAPB” e que estas devem cumprir com suas obrigações financeiras. 

Segundo os dados apresentados no conselho de ministros, as dívidas das EAPB somam mais de 15 bilhões de pesos [cerca de 20 milhões de reais] e as contas a pagar relativas a insumos e medicamentos às gestoras farmacêuticas são estimadas em 1 bilhão [1,3 milhão de reais]. Diante dessa situação, o ministro da Saúde da Colômbia, Guillermo Jaramillo, declarou: “o governo aumentou o orçamento da saúde; só no primeiro ano deste governo, houve um incremento de 27,5%. A UPC foi aumentada como nunca antes, sempre acima da inflação. Nos disseram que não aumentamos, mas aos outros governos nunca cobraram quando aumentavam muito abaixo da inflação”.

Nós da Fundação IFARMA denunciamos as atividades que atentam contra a saúde pública e o direito à saúde e à vida, e evidenciamos como o atual sistema de saúde interfere na implementação da primeira licença compulsória concedida no país.

O impasse do dolutegravir

A emissão da primeira licença compulsória* para uso governamental foi expedida em 2023 para o medicamento dolutegravir, um antirretroviral essencial no tratamento do HIV, que demonstrou ser altamente eficaz. O seu alto preço era um obstáculo para o acesso, a emissão da licença compulsória foi a opção legal utilizada para aumentar sua disponibilidade com a diminuição do preço. 

Segundo o governo colombiano, o custo estimado do tratamento com dolutegravir (comercialmente conhecido como TIVICAY®, na apresentação de 50 mg) por paciente/ano era de aproximadamente US$ 1.235, com base no preço registrado no Sistema de Informação de Preços de Medicamentos (SISMED). Em contraste, o custo do mesmo tratamento adquirido via Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) é de aproximadamente US$ 45 por paciente/ano.

Contudo, a implementação dessa medida legal tem encontrado obstáculos. Por um lado, a pressão das farmacêuticas. Elas falsamente argumentam que essa licença compulsória irá desincentivar a inovação. Além disso, a consideram ilegítima e ilegal, fato que gerou um debate intenso no país. A falta de clareza sobre as regulamentações e o uso das licenças compulsórias tem criado incertezas, tanto para os prestadores de serviços de saúde como para os pacientes — o que fez com que, até o momento, o acesso ao medicamento continue limitado. 


As EAPB se aproveitaram desse desconhecimento para impor barreiras administrativas adicionais, que resultaram na impossibilidade de acesso dos pacientes ao tratamento. Embora o Ministério da Saúde tenha promovido espaços e diálogos necessários com os prestadores de saúde, estes têm resistido a implementar as mudanças exigidas para facilitar a entrega do tratamento. Essa situação apenas reafirma o caráter lucrativo e excludente do atual sistema, que perpetua a visão da saúde como um negócio.

Hoje, a reforma da saúde proposta por Petro tem como objetivo a cobertura universal e a equidade no acesso aos serviços de saúde por meio de diferentes estratégias que garantam o acesso através de um financiamento sustentável e o fortalecimento do sistema público, com um forte enfoque em atenção primária.

Essa proposta de reforma, contudo, tem enfrentado obstáculos que impedem o seu avanço e a sua aprovação, especialmente pela falta de consenso político a respeito do fim da intermediação financeira pelas EAPB — empresas que figuram entre as maiores beneficiárias do sistema atual, e se opõem à reforma por verem seus lucros ameaçados.

O sistema de saúde colombiano enfrenta inúmeros desafios, que requerem respostas que priorizem a equidade e o acesso a tratamentos acessíveis. A implementação da licença compulsória para o dolutegravir representa um passo crucial em direção à garantia do acesso a medicamentos antirretrovirais, mas necessita de um compromisso político sólido para superar os obstáculos atuais, em especial o atual sistema. Garantir o direito à saúde de todos os colombianos deveria ser o objetivo principal de qualquer estratégia de política pública em saúde.

Como funciona a saúde colombiana

O Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde na Colômbia, regido pela Lei 100/1993, se baseia em um modelo de seguridade social misto verticalizado que combina a atenção pública e a atenção privada. O seu financiamento também é misto (público e privado). 

Sua estrutura é composta principalmente por três atores: 

1. As seguradoras denominadas Empresas Administradoras de Planos de Benefício (EAPB), que são empresas as responsáveis por administrar os recursos financeiros para a atenção em saúde e garantir o acesso aos serviços médicos. As EAPB podem ser do regime contributivo (contribuição obrigatória por faixa salarial) ou do regime subsidiado (para aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade); 

2. Os provedores de serviços de saúde, conhecidos como Instituições Prestadoras de Saúde (IPS), que incluem hospitais, clínicas e centros médicos, que podem ser públicos ou privados. São as EAPB que contratam esses serviços, assim como contratam também as empresas que se encarregarão da dispensação dos medicamentos, conhecidas como Operadores Logísticos ou Gestores Farmacêuticos;

3. O Ministério da Saúde e Proteção Social, encarregado de repassar o financiamento necessário para a atenção em saúde mediante a Unidade de Pagamento por Capitação (UPC), através de uma entidade que hoje é conhecida como a Administradora dos Recursos do Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde (ADRES), além de regular e supervisionar o sistema de saúde, assim como estabelecer políticas e garantir o cumprimento das normas, como afirma a Lei 100 de 1993

Essa estrutura vertical do sistema de saúde, baseada na intermediação financeira, tem gerado importantes barreiras para o acesso aos serviços de saúde, como a fragmentação na atenção, desigualdades no acesso e má qualidade dos serviços, especialmente em áreas rurais, além de corrupção. Essa crise tem se agravado desde a emergência sanitária da covid-19. 

Podemos afirmar que este é um sistema de saúde despudoradamente baseado no lucro e no qual a efetivação do direito à saúde não é uma prioridade. As barreiras comerciais também são demonstrativas de um sistema de saúde perverso, já que o preço de muitos medicamentos e tratamentos continua sendo proibitivamente alto. Esse fator coloca em risco a sustentabilidade do sistema de saúde, dado que implica uma carga maior de financiamento, uma vez que a maior parte são recursos públicos, ameaçando diretamente a efetivação do direito à saúde da população colombiana.

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Guerra comercial: a China diz não a Trump

Pequim rejeita chantagem dos EUA, mantém represália ao tarifaço e parece não temer nova taxa sobre seus produtos. Por trás da atitude está longo esforço para desenvolver autonomia, coroado agora por forte aposta no consumo interno

ATUALIZAÇÃO:
Em 8/4, a Casa Branca efetivou a ameaça de impor nova sobretaxa (50%) aos produtos chineses, que agora pagarão 104% de tarifas aduaneiras nos EUA. Em 9/4, o departamento de Comércio chinês respondeu com tarifa de 50% sobre todos os produtos norte-americanos. No mesmo dia, registrou-se um forte movimento de vendas de títulos do Tesouro norte-americanos de longo prazo — o que em geral indica corrida de empresas ou bancos para fazer frente a perdas graves. Temia-se que a eventual quebra de uma grande instituição desencadeasse um terremoto semelhante ao da crise global de 2008.

Na segunda-feira (7/4), o poderoso Japão, até então impávido, pareceu ceder. Diante das tarifas impostas Making China Great Again,sobre seus produtos por Donald Trump (24%) e da queda abrupta da bolsa de valores de Tóquio (-20%, em três dias), o primeiro-ministro Shighero Ishiba chamou Donald Trump ao telefone e, após 25 minutos, concordou em enviar a Washington uma delegação que tentará uma barganha. O presidente dos EUA esnobou recorrendo às maiúsculas, em sua rede social: “Eles não compram nossos carros, mas nós compramos MILHÕES dos deles. Tudo tem que mudar, mas especialmente com a CHINA”.

Ishiba não foi o único a ceder. A revista Economist relata que, segundo a Casa Branca, 70 governos – entre eles o do Brasil – procuraram os EUA para abrir negociações desde que Trump exibiu, em 2/4, um placar com números esotéricos e decretou seu grande tarifaço. A exceção é, precisamente, o alvo prioritário de Trump: a China.


Em 4/4, depois de ser atingido por três rodadas de sobretaxas aduaneiras, o governo chinês reagiu e impôs – além de outras medidas dolorosas, porém discretas – uma vistosa alíquota de 34% sobre todos os produtos norte-americanos. Trump retrucou em poucas horas, “exigindo” a retirada da medida e ameaçando impor, em caso de não haver recuo, mais 50%. Deu prazo: zero hora de 8/4. Os chineses reagiram 24 antes, e o fizeram com calculado desdém. A resposta ao presidente dos EUA veio por meio de uma mera nota do Ministério do Comércio chinês. Ela apontava, na atitude de Washington, “um erro em cima de outro erro”, qualificava o gesto de “extorsivo” e alertava que a China “lutará até o fim” contra tal tipo de prática. Os 50% suplementares entrarão em vigor em 9/4. Espera-se para breve um novo lance de Pequim.

Há menos de duas décadas, as economias chinesa e norte-americana estavam tão integradas entre si que havia quem falasse na existência de “G-2”, que – protagonizado evidentemente por Washington… – influenciava fortemente a política internacional. Que mudanças deram a Pequim a margem de manobra de que parece desfrutar agora? Outra matéria, na última edição de Economist, ajuda a compreender. A revista, espécie de porta-voz do liberalismo e do eurocentrismo ilustrados, é insuspeita de simpatias pela China. Seu texto revela, com base em fatos, como a autonomia chinesa foi alcançada; e como a chantagem de Trump poderá surtir efeito oposto ao esperado, tanto no terreno econômico quanto no geopolítico.

A China agiu diligentemente para defender-se dos EUA, mostra a Economist. As primeiras sobretaxas a suas importações vieram no primeiro governo Trump, e foram agravadas por seu sucessor, Joe Biden. Produziram efeito considerável – redução de cerca de 0,8% no PIB chinês. E não houve apenas restrições comerciais. Em agosto de 2018, Washington proibiu a venda de equipamentos e softwares a duas empresas chinesas, Huawey e ZTE. A primeira, então a maior fabricante mundial de celulares, foi forçada a retirar-se por anos deste mercado. Salvou-se da falência graças ao apoio de Pequim. A Casa Branca voltou à carga, já com Biden. Em 2022, tentou-se estrangular o rápido desenvolvimento de inteligência artificial na China. Foram banidas as exportações, para o país, tanto de chips avançados quanto das máquinas utilizadas para fabricá-los. As sanções têm caráter extraterrritorial: atingem também empresas estrangeiras, que, caso forneçam a Pequim, sofrem punições em Washington.

A China adotou um conjunto de medidas para livrar-se desta dependência. Os EUA, que eram o destino de mais de 20% de suas exportações, agora compram menos de 15% dos produtos chineses. Mas mais importantes foram os passos tecnológicos. Lançado ainda antes das sanções (em 2015), o plano estratégico Made in China 2025 procurou transformar a indústria do país. A China já era, então, a “fábrica do mundo”, mas parte considerável de sua produção era intensiva em trabalho, e de baixo valor agregado. A ênfase foi desenvolver as chamadas “novas forças produtivas”: apostar em setores industriais e de serviços de alta tecnologia – como semicondutores, farmacêutica avançada, robótica, Making China Great Again,biomedicina, novos materiais, inteligência artificial, equipamento ferroviário de última geração. Enormes somas foram destinadas a universidades e centros de pesquisa. O Estado estimulou – e direcionou a ação – tanto de grandes laboratórios públicos como de startups privadas.

Os resultados já surgiram. Há quase um ano, a Economist avaliou que o ataque à Huawey foi um tiro no pé. Outra publicação liberal, Foreign Affairs, reconheceu à mesma época que o banimento das vendas de chips terminaria ajudando Pequim, que os desenvolveria autonomamente. O lançamento do DeepSeek, no início deste ano, confirmou estes temores. Talvez o mais relevante seja, porém, o que a China prepara-se para fazer, diante das sobretaxas estratosféricas de Trump.

As medidas vão terminar Making China Great Againadverte Economist, numa blague com MAGA, o mote central do presidente. É que, diante inevitável redução das exportações para os EUA, o Estado chinês já se prepara para adotar um conjunto de medidas para ampliar o consumo interno. Há muito espaço para isso, mostra a revista. O gasto das famílias corresponde a menos de 40% do PIB – contra quase 70% nos EUA, mais de 60% no Brasil e entre 50% e 60% na França e Alemanha.

A aposta no consumo interno já começou a ser feita, aliás. Há anos, Pequim trabalha para enfrentar a crise que atingiu o setor imobiliário, autorizado a funcionar por cerca de uma década segundo lógicas capitalistas. As empresas do setor sofreram intervenção do Estado. Recursos públicos foram destinados à compra de apartamentos, vendidos à população com subsídios. Há sinais de que o pior passou, reconhece a Economist. E vem aí uma espécie de “pacote de bondades”.


O Estado emitiu moeda de modo farto (o equivalente a US$ 830 bilhões) para livrar os governos provinciais e locais de dívida. A medida está permitindo-lhes ampliar políticas de transferência de renda à população e investimentos em infraestrutura (muito decentralizados no país). Os salários dos servidores públicos e as aposentadorias foram elevados. Há estímulos à alta do salário mínimo (também definido regionalmente). O economista brasileiro Elias Jabbour frisa a relevância de outra virada: concentrar o desenvolvimento urbano não mais em grandes obras, mas na garantia de serviços públicos de Saúde e Educação de alta qualidade.

É provável que a arrogância de Trump abra mais espaço para Pequim também no terreno geopolítico. Como as sanções dos EUA atingem dezenas de países, e a Casa Branca parece pouco disposta a estabelecer diálogo franco com a maior parte deles (vide os comentários acerca do Japão), a China poderá ter meios para ensaiar parcerias inclusive com aliados tradicionais de Washington. Pequim não está perdendo tempo. Em 22/3, o chanceler Wang Yi encontrou-se em Tóquio com seu colega sul-coreano e com o primeiro-ministro do Japão. Reuniões do mesmo caráter não ocorriam há seis anos. Se voltaram a ter lugar é porque os dois países, vistos como os principais anteparos da ordem liberal ao poder chinês na Ásia, podem não estar se sentindo tão confortáveis nesta posição.

Igualmente significativo foi um longo telefonema trocado, nesta terça-feira (8/3), pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen e o primeiro-ministro chinês, Li Qiang. Segundo o jornal chinês Global Times, eles debateram meios de garantir a “estabilidade e previsibilidade” das relações comerciais e modos para redirecionar as respectivas exportações aos EUA, após a imposição do tarifaço. Sinais dos tempos… – e de que Trump terá dificuldades para impor sua agenda aos governantes que espera receber em Washington.

Chama atenção, em todo o episódio, o vácuo aberto para uma parceria Sul-Sul. Os governantes chineses têm declarado seguidamente que se veem neste lado do planeta e que suas alianças prioritárias tendem a se dar por aqui. Por sua relevância geoestratégica e econômica, o Brasil teria amplas condições de ser parte deste arranjo, e talvez de ajudar a liderá-lo. Infelizmente, sob Lula 3 a diplomacia do país já não parece ser nem ativa, nem altiva…

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Pelo menos 20 pessoas estão desaparecidas após naufrágio em Lampedusa

Criança de oito anos está entre os sete migrantes sobreviventes. O paradeiro da mãe é desconhecido

Mais de 20 pessoas desapareceram após uma pequena embarcação afundar perto da ilha de Lampedusa, na Itália. O barco zarpou em 30 de dezembro da cidade de Zuwara, na Líbia, localizada a 120 km da capital do país, Trípoli.

Segundo o Unicef, pelo menos sete pessoas sobreviveram, incluindo uma criança de oito anos. Nesta quinta-feira, as autoridades retomaram as buscas.

Barco virou ao se aproximar da costa italiana

Agências de notícias informaram que, entre os sete sobreviventes, estão migrantes do Egito, da Síria e do Sudão.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) relatou que a mãe da criança sobrevivente está desaparecida. Relatos indicam que o barco virou ao se aproximar da costa italiana, destino de migrantes.

A tragédia ocorre apenas algumas semanas após outro incidente fatal na mesma ilha. Na ocasião, a única sobrevivente foi uma menina de 11 anos.

O número de mortos e desaparecidos no Mediterrâneo em 2024 ultrapassou 2,2 mil. Quase 1,7 mil dessas mortes ocorreram na rota central do Mediterrâneo.

Vítimas menores

Em cada cinco migrantes nessa rota, um é criança. Muitas utilizam o caminho para escapar de conflitos violentos e da pobreza.

O Unicef fez um apelo aos governos para que implementem o Pacto de Migração e Asilo, priorizando a proteção das crianças e aumentando o investimento em serviços essenciais para elas e suas famílias nos trajetos mais perigosos.

A agência destacou que essa assistência deve incluir apoio psicossocial, assistência jurídica, atendimento médico e acesso à educação.

O Unicef também reforça que os governos precisam abordar as causas principais da migração, apoiar a integração das famílias nas comunidades anfitriãs e garantir que os direitos das crianças sejam protegidos em todas as etapas da jornada.

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Groenlândia ‘não está à venda’: Egede rebate Trump e pede soberania

O primeiro-ministro da Groenlândia, Mute Egede, defendeu a independência da ilha, destacando desigualdades históricas com a Dinamarca e rejeitando o interesse renovado de Donald Trump em comprar o território

A busca pela independência da Groenlândia ganhou destaque na última semana, com o primeiro-ministro Mute Egede reafirmando o compromisso de libertar a ilha dos “grilhões da era colonial”. Durante seu discurso de Ano Novo, Egede enfatizou a necessidade de autodeterminação, destacando desigualdades persistentes no relacionamento com a Dinamarca e sinalizando a possibilidade de um referendo sobre a independência ainda em 2025. As informações são do Euronews.

Atualmente, a Groenlândia opera sob um regime de autogovernança conquistado em 1979 e reforçado em 2009, quando um referendo garantiu o direito de declarar independência. No entanto, o subsídio anual de 500 milhões de euros fornecido pela Dinamarca é um ponto sensível, tanto do ponto de vista econômico quanto político.

“A história e as condições atuais mostram que nossa parceria com o Reino da Dinamarca não alcançou a plena igualdade”, declarou Egede.

A ilha, conhecida por suas vastas reservas de petróleo, gás natural e minerais, também é uma peça-chave no tabuleiro geopolítico global. A atenção renovada do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que em 2019 e novamente em 2024 expressou interesse em adquirir a Groenlândia, sublinhou a relevância estratégica do território. Egede, no entanto, foi categórico: “A Groenlândia não está à venda e nunca estará”.

Esse período também trouxe à tona debates sobre o legado colonial e as desigualdades estruturais que ainda afetam a população local. A Dinamarca, por sua vez, anunciou planos de aumentar os gastos com defesa na região em 1,3 bilhão de euros, em um movimento interpretado como resposta indireta às recentes tensões diplomáticas e às críticas por episódios históricos como as campanhas de contracepção forçada realizadas em meados do século XX.

Egede sugeriu que o referendo pela independência poderia coincidir com as eleições parlamentares de abril, marcando um ponto de inflexão na história da ilha. “O trabalho já começou na construção da estrutura para a Groenlândia como um estado independente”, afirmou. Ele também pediu à população que se una em torno dessa visão, destacando o momento crítico que o país enfrenta.

Com uma população de apenas 57 mil pessoas e um parlamento próprio, a Groenlândia busca equilibrar os desafios de sua transição para a independência com as oportunidades econômicas e políticas que surgem em seu caminho. A ilha também permanece representada no parlamento dinamarquês, o Folketing, com dois assentos.

O futuro da Groenlândia como um estado soberano permanece incerto, mas a determinação de seus líderes e as pressões globais sugerem que uma nova era pode estar prestes a começar no ártico.

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Fuga em massa de presos aprofunda crise pós-eleitoral em Moçambique

País enfrenta instabilidade desde as eleições de outubro, com acusações de fraude e violência que já levou a dezenas de mortes

Mais de 1,5 mil prisioneiros escaparam de uma prisão em Maputo, capital de Moçambique, em meio a uma onda de protestos desencadeada por resultados eleitorais contestados. A polícia confirmou que, durante o incidente, 33 pessoas morreram e 15 ficaram feridas em confrontos com guardas. Até o momento, cerca de 150 fugitivos foram recapturados, segundo informações da polícia. As informações são da BBC.

A fuga ocorreu na quarta-feira (25), quando manifestantes antigovernamentais se aproximaram da prisão, criando tumulto suficiente para que os presos derrubassem um muro e escapassem. A capital tem sido palco de violentos protestos desde que o tribunal superior do país confirmou, na última segunda-feira (23), a vitória do partido no poder, Frelimo, nas eleições presidenciais de outubro.

A agitação cresceu ainda mais após a revisão oficial dos resultados, que diminuiu a margem de vitória do presidente eleito, Daniel Chapo.

Os números iniciais da eleição indicavam que Chapo havia vencido com 71% dos votos, contra 20% do principal candidato da oposição, Venâncio Mondlane. No entanto, após a decisão do tribunal constitucional, a vitória foi ajustada para 65%, enquanto Mondlane obteve 24%. Para muitos, a mudança nos números reforçou as acusações de fraude eleitoral levantadas pela oposição.

Mondlane, que atualmente está fora do país, tem mobilizado seus apoiadores por meio das redes sociais. Em uma mensagem recente, ele sugeriu que poderia haver uma “nova revolta popular” caso os resultados não fossem anulados. A instabilidade resultante levou à morte de pelo menos 150 pessoas nos três meses desde as eleições, segundo estimativas oficiais.

A onda de manifestações teve início após as eleições presidenciais realizadas em 9 de outubro, que garantiram a permanência do partido governista no poder, posição que ocupa há mais de meio século. No entanto, as acusações de fraude eleitoral por parte da oposição e de amplos setores da sociedade civil alimentaram a insatisfação popular. Os resultados oficiais foram amplamente contestados, com alegações de irregularidades que comprometem a legitimidade do pleito.

Capital em colapso

Na véspera de Natal, Maputo parecia uma cidade fantasma. A maioria dos negócios, delegacias de polícia e fábricas relacionadas à Frelimo foi saqueada, vandalizada ou incendiada. Escritórios e bancos também fecharam as portas, enquanto moradores preferiram permanecer em casa para evitar os confrontos.

De acordo com o ministro do Interior, 21 pessoas foram mortas apenas desde segunda-feira, no auge das tensões. A violência atual é a pior registrada na capital desde que o Frelimo chegou ao poder, em 1975.

Entenda o caso

Chapo foi declarado vencedor das eleições presidenciais e assegurou mais cinco anos de mandato ao partido que governa o país desde sua independência de Portugal, em 1975. A vitória de Chapo reforça a hegemonia da Frelimo, que há quase cinco décadas se mantém no poder em Moçambique, um país com aproximadamente 34 milhões de habitantes.

A vitória, no entanto, foi imediatamente contestada por partidos de oposição, que acusaram a Frelimo de fraudes generalizadas. Entre as principais denúncias estão alegações de enchimento de urnas, manipulação das listas de eleitores e nomeação de funcionários eleitorais leais ao partido governista nos centros de votação. As acusações não são novidade para a Frelimo, que já enfrentou reclamações similares em eleições passadas, colocando em xeque a transparência do processo democrático no país.

Uma missão de observadores internacionais da União Europeia (UE), que acompanhou o pleito, relatou irregularidades significativas, incluindo manipulação dos resultados em algumas regiões. Os observadores destacaram a falta de transparência e a pressão sobre os eleitores em áreas controladas pela Frelimo, levantando dúvidas sobre a legitimidade do resultado anunciado.

A imprensa local noticiou que o Conselho Constitucional, a entidade responsável por garantir o cumprimento das leis eleitorais, solicitou à Comissão Eleitoral Nacional explicações sobre as discrepâncias identificadas. Em resposta, a Comissão afirmou que está analisando os relatórios e prometeu investigar as supostas irregularidades, mas ainda não forneceu um prazo para a conclusão dessas averiguações.

O líder da oposição, que não foi identificado, convocou protestos pacíficos nas principais cidades do país, exigindo um recálculo dos votos e uma auditoria independente. “Não podemos aceitar que nossa democracia seja sequestrada”, declarou em um comício realizado em Maputo, onde centenas de apoiadores foram às ruas para expressar sua insatisfação.

Analistas observam que, caso as denúncias sejam confirmadas, o governo de Daniel Chapo poderá enfrentar dificuldades não apenas internas, mas também pressões externas, incluindo possíveis sanções internacionais que podem impactar a economia moçambicana. A comunidade internacional, especialmente países da União Europeia e organizações de direitos humanos, têm monitorado de perto a situação, exigindo um esclarecimento rápido das autoridades locais para garantir que a vontade do povo moçambicano seja respeitada.

No dia 29 de outubro, associações médicas divulgaram que pelo menos dez pessoas perderam a vida durante os protestos. Tanto a sociedade civil quanto a imprensa reportaram que o número de vítimas fatais aumentou devido à violência policial ao longo de uma semana de manifestações, iniciada em 31 de outubro por convocação de Venâncio Mondlane e que está prevista para culminar em Maputo no dia 7 de novembro.

Moçambique possui um histórico marcado por violações de direitos humanos em períodos eleitorais conturbados, incluindo episódios semelhantes ocorridos no ano passado.

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A Ucrânia tinha motivos para matar um general russo, mas que bem isso faria?

Artigo diz que morte de Igor Kirillov levanta questões sobre os limites dos assassinatos direcionados, mas ressalta que os EUA abriram tal precedente

Por Max Boot

Um ano atrás, a publicação online Task & Purpose contabilizou pelo menos sete generais russos mortos durante a guerra na Ucrânia. Nos países ocidentais, suas mortes foram geralmente celebradas, já que a Rússia é o agressor no conflito e os generais foram mortos em combate. Os Estados Unidos supostamente forneceram as informações de inteligência que permitiram às forças ucranianas atacar algumas das sedes onde esses generais morreram.

A morte, na terça-feira (17), do tenente-general Igor Kirillov, chefe das Tropas de Proteção Radiológica, Química e Biológica da Rússia, é mais controversa porque ocorreu em Moscou, a centenas de quilômetros da linha de frente. Rompendo o padrão normal de governos de nem confirmar nem negar sua participação em tais “operações úmidas”, o SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia) reivindicou orgulhosamente o crédito pelo assassinato de Kirillov e de um assistente, usando uma scooter carregada com explosivos. Na quarta-feira (18), a polícia secreta da Rússia, o FSB (Serviço Federal de Segurança, da sigla em inglês), anunciou a prisão de um uzbeque de 29 anos que, segundo eles, teria recebido US$ 100 mil dos ucranianos e a promessa de passagem segura para a Europa para executar a operação.

Um oficial do SBU disse aos meus colegas do The Washington Post que Kirillov era um “alvo absolutamente legítimo, pois ele dava ordens para o uso de armas químicas proibidas contra o exército ucraniano.” De fato, há evidências críveis de que as forças de Kirillov usaram agentes sufocantes potentes contra tropas ucranianas em pelo menos 4,8 mil ocasiões.

Ainda assim, o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan desaprovou: “Apoiamos e ajudamos a Ucrânia a se defender e a combater as forças russas no campo de batalha, mas não operações como esta,” disse ele na quarta-feira no programa Morning Joe da MSNBC, acrescentando: “Do ponto de vista dos Estados Unidos, operações de assassinato, longe do campo de batalha em uma capital, não fazem parte da doutrina militar americana.”

Na realidade, isso tem feito parte da prática militar americana. Em 2020, forças dos EUA mataram o major-general Qasem Soleimani, o alto oficial iraniano que comandava a Força Quds, em um ataque aéreo em Bagdá — outra capital. Os Estados Unidos não estavam em guerra com o Irã, então os americanos, arguivelmente, tinham bases mais fracas para matar Soleimani do que os ucranianos tinham para matar Kirillov. Ainda assim, embora a sabedoria de matar Soleimani tenha sido amplamente questionada, sua moralidade e legalidade foram geralmente aceitas, porque ele era um líder terrorista. Os generais russos, por sua vez, são responsáveis por travar uma guerra de agressão e por supervisionar forças que cometeram crimes de guerra.

Não há dúvida de que Kirillov era um alvo legítimo. Michael N. Schmitt, especialista em leis de guerra da academia militar de West Point, disse que, embora ainda esteja estudando o caso, seu julgamento preliminar é o de que “parece bastante direto; oficiais militares são combatentes, que são alvos legítimos em território beligerante.”

Ainda assim, o fato de um país estar autorizado a fazer algo não significa que deva fazê-lo. A operação contra Kirillov é um caso difícil. Foi justificada, mas não fará muita diferença.

É compreensível que os ucranianos queiram sinalizar às elites russas que elas serão responsabilizadas pelos crimes do regime de Putin. Os ucranianos não parecem preocupados com retaliações russas porque sabem que as forças russas já realizaram muitos esforços para matar líderes ucranianos, desde o presidente Volodymyr Zelensky para baixo.

Mas não há razão para acreditar que a morte de Kirillov terá qualquer efeito apreciável no esforço de guerra russo. O Kremlin simplesmente promoverá outro general para ocupar seu lugar. Isso é geralmente o que acontece sempre que uma grande organização perde um de seus líderes — e é por isso que assassinatos direcionados raramente são decisivos. A morte de Soleimani, por exemplo, mal enfraqueceu o apoio do Irã às suas forças por procuração na região — e supostamente levou o Irã a lançar seus próprios planos contra Donald Trump e outros líderes americanos que supervisionaram o assassinato de Soleimani.

Israel obteve mais sucesso militar nos últimos meses ao matar o líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, e o líder do Hamas, Yahya Sinwar — mas apenas porque essas mortes ocorreram no contexto de ofensivas israelenses muito maiores contra suas organizações militantes. Se Israel os tivesse matado em tempos de paz, é duvidoso que tivesse feito tanta diferença.

De forma mais ampla, a ênfase dos EUA e de Israel em “assassinatos direcionados” corre o risco de borrar a distinção entre combatentes e não combatentes, pois permite que regimes iliberais justifiquem a eliminação de seus críticos no exterior sob o argumento de que estão seguindo precedentes ocidentais. O regime Modi, na Índia, por exemplo, foi recentemente acusado de tramar o assassinato de ativistas sikh nos Estados Unidos e no Canadá. Um ex-alto funcionário da inteligência dos EUA disse ao The Washington Post: “Isso é [o primeiro-ministro indiano Narendra] Modi olhando para o mundo e dizendo a si mesmo: ‘Os Estados Unidos realizam assassinatos direcionados fora de zonas de guerra. Os israelenses fazem isso. Os sauditas fazem isso. Os russos fazem isso. Por que não nós?’”

Antes de criticar a Ucrânia por matar um general russo em Moscou, os funcionários dos EUA deveriam se perguntar que precedentes suas próprias ações estabelecem. Por mais justificados que possam ser os assassinatos direcionados individuais, a tendência maior é preocupante.

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Denúncias de maus-tratos e abusos trabalhistas na fábrica da BYD no Brasil geram mobilização política e investigação

Acusada de desrespeitar leis nacionais e internacionais na construção de sua fábrica na Bahia, montadora chinesa é questionada por parlamentares e ativistas

As denúncias de maus-tratos e condições de trabalho insalubres na construção da nova fábrica da montadora chinesa BYD em Camaçari, na Bahia, têm mobilizado autoridades brasileiras e gerado questionamentos no Congresso Nacional. Segundo reportagem da Agência Pública e informações do Ministério Público do Trabalho (MPT), operários chineses terceirizados enfrentam jornadas de até 12 horas diárias sem folga semanal e, em alguns casos, sem acesso a água potável.

O deputado Junio Amaral (PL/MG) apresentou dois requerimentos solicitando esclarecimentos aos ministros do Trabalho, Luiz Marinho, e da Casa Civil, Rui Costa, sobre as providências tomadas pelo governo em relação às denúncias. O parlamentar questiona se o Ministério do Trabalho e Emprego realizou fiscalizações in loco e se há registros de outras denúncias semelhantes envolvendo empresas chinesas no Brasil.

Além disso, o parlamentar mencionou uma investigação iniciada pelo MPT em novembro, após as primeiras denúncias chegarem ao conhecimento das autoridades em setembro. Uma inspeção no local foi realizada em 11 de novembro, constatando irregularidades que incluem jornadas abusivas e possíveis atos de violência contra os trabalhadores.

“Não podemos admitir em momento algum qualquer aval ou licença para que empresas estrangeiras se instalem no Brasil para deliberadamente violar nossa legislação trabalhista e até mesmo normas internacionais de trabalho diante de explorações nas jornadas trabalhistas, ambientes insalubres e até mesmo atos violentos”, diz o texto assinado por Amaral.

BYD se pronuncia e governo é pressionado

Diante da repercussão, a BYD afirmou ter tomado medidas internas e enviado à China os responsáveis pelos abusos. Contudo, parlamentares e entidades de direitos trabalhistas consideram a resposta insuficiente, cobrando ações concretas para proteger os direitos dos operários envolvidos.

Amaral também questiona o envolvimento da Casa Civil, destacando o encontro entre Rui Costa, representantes da BYD e o governador da Bahia. “Precisamos saber quais pedidos foram formalmente feitos ao governo federal e quais providências estão em andamento para resolver o escândalo”, afirma ele no requerimento.

Condições precárias e violação de direitos

As denúncias indicam que os trabalhadores chineses estão sujeitos a um regime de trabalho que viola tanto a legislação trabalhista brasileira quanto normas internacionais. De acordo com a Agência Pública, relatos mencionam agressões físicas e psicológicas no canteiro de obras, além de uma completa falta de estrutura para garantir a dignidade no trabalho.

Organizações de direitos humanos e sindicatos estão acompanhando o caso e pedem uma fiscalização rigorosa. “É inadmissível que empresas estrangeiras operem em nosso país desrespeitando direitos básicos e tratados internacionais de trabalho”, declarou uma fonte ligada às investigações.

Fiscalização e apuração em curso

O MPT segue com a investigação, mas, até o momento, o governo federal ainda não apresentou medidas concretas. O Ministério do Trabalho e do Emprego foi questionado sobre outras fiscalizações em empresas chinesas no Brasil e eventuais tratativas com o Itamaraty para apurar o caso.

A repercussão do escândalo levanta questionamentos sobre a transparência das relações entre grandes empresas estrangeiras e o governo brasileiro, além da efetividade das ações de fiscalização no cumprimento das leis trabalhistas.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recebe representantes da BYD Brasil no Palácio da Alvorada. janeiro de 2024 (Foto: Ricardo Stuckert/PR/divulgação)

A expansão chinesa na América Latina e o impacto nas condições trabalhistas

As denúncias envolvendo a fábrica da BYD na Bahia não são caso isolado. Desde o início do século 21, a presença chinesa na América Latina tem crescido de forma acelerada, especialmente por meio de investimentos em infraestrutura e energia. Contudo, junto das oportunidades econômicas surgem preocupações relacionadas ao desrespeito aos direitos trabalhistas, tanto de trabalhadores locais quanto dos próprios operários chineses deslocados para a região.

Li Qiang, diretor-executivo da organização China Labor Watch, alertou em junho de 2023, em entrevista à reportagem de A Referência, que práticas como confisco de passaportes, trabalho forçado e tráfico de pessoas têm sido relatadas em projetos chineses no exterior. Segundo ele, essas ações não apenas violam a dignidade dos trabalhadores, mas também afetam negativamente os padrões trabalhistas nos países anfitriões, criando ambientes de competição desleal entre operários locais e chineses.

O caso da BYD no Brasil reflete um padrão observado em outras partes do mundo, como a Indonésia, onde greves recentes foram marcadas por confrontos violentos em fábricas controladas por empresas chinesas. Relatos de abusos, condições precárias e tratamento humilhante têm levado a reações por parte de autoridades locais e organizações de direitos humanos, que pedem fiscalização rigorosa e responsabilização das companhias envolvidas.

Abusos contra estrangeiros na Sérvia

Em novembro, a China Labor Watch reatou outro episódio, na Sérvia, onde pessoas empregadas em projetos ligados à Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative) vivem sob condições de trabalho exploratórias e em desacordo com padrões internacionais de direitos humanos.

As investigações concentraram-se em duas empresas chinesas: a mineradora Zijin e a fábrica de pneus Linglong. Segundo o relatório, os trabalhadores são originários de países como ÍndiaNepal e Zâmbia e enfrentam situações que violam as normas internacionais.

Muitos dos trabalhadores têm seus passaportes confiscados assim que chegam ao país, e a eles são impostas taxas de recrutamento que variam entre US$ 1,4 mil US$ 4,8 mil, o que pode representar até um ano e meio de salário.

“Isso os coloca em uma posição de vulnerabilidade, presos a seus empregadores para pagar dívidas acumuladas, configurando uma forma de servidão por dívida, de acordo com a definição da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”, aponta o relatório da ONG.

Ao analisar o caso sérvio, a China Labor Watch reforça que as violações refletem não apenas práticas locais, mas uma extensão de abusos identificados sobretudo em outros projetos inseridos na BRI. O relatório ainda denuncia a falta de fiscalização por parte das autoridades sérvias e chinesas, além de lacunas regulatórias internacionais, que perpetuam o problema.

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Investigações levantam suspeitas de interferência russa em queda de avião da Embraer no Cazaquistão

Aeronave Embraer 190, da Azerbaijan Airlines, caiu durante pouso emergencial; especialistas analisam possíveis danos de projéteis

As investigações sobre a queda de um avião da Azerbaijan Airlines no Cazaquistão, que deixou 38 mortos e dezenas de feridos, levantam suspeitas de interferência russa. A aeronave, um Embraer 190 fabricado no Brasil, caiu na quarta-feira (25) durante um pouso emergencial em Aktau, após relatar falhas de navegação e possíveis danos à fuselagem. Autoridades e especialistas analisam a possibilidade de que sistemas de defesa aérea ou até mesmo um míssil tenham contribuído para a tragédia. As informações são da Newsweek.

O voo J2-8243 seguia de Baku, no Azerbaijão, para Grozny, na Chechênia, e transportava passageiros de diferentes nacionalidades, incluindo cidadãos de Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. Entre as vítimas estavam uma mãe e seu filho de 11 anos. Embora as primeiras hipóteses incluíssem condições climáticas adversas e impacto com aves, análises recentes indicam que fragmentos de projéteis podem ter atingido o avião.

“É provável que o voo da Azerbaijan Airlines tenha sido atingido por estilhaços de um sistema de defesa aérea”, afirmou Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia.

Imagens da fuselagem mostram buracos que, segundo Andriy Kovalenko, do Conselho de Segurança Nacional da Ucrânia, não correspondem a um impacto com aves. Ele sugeriu que um míssil terra-ar pode ter desativado os sistemas da aeronave.

FlightRadar24, que monitora voos em tempo real, revelou que o avião enfrentou falhas no sinal de GPS pouco antes do acidente, o que dificultou o pouso. Durante mais de dez minutos, o avião deixou de transmitir dados precisos sobre sua localização, agravando a situação.

Reações e posicionamento da Embraer

A Embraer, fabricante brasileira responsável pelo modelo acidentado, se manifestou. “Estamos profundamente entristecidos com essa tragédia. Estamos monitorando a situação de perto e comprometidos em fornecer suporte total às autoridades competentes”, declarou a empresa em nota.

O avião, fabricado em 2013, havia passado por uma inspeção técnica completa em outubro deste ano e acumulava 671 horas de voo desde então.

Líderes políticos também reagiram ao acidente. O presidente russo, Vladimir Putin, expressou condolências às famílias das vítimas e prometeu apoio aos feridos. “Esperamos uma investigação completa e desejamos pronta recuperação aos sobreviventes”, afirmou.

Ramzan Kadyrov, líder da Chechênia, também manifestou pesar, enquanto o governo do Azerbaijão enviou uma delegação ao local da queda e criou uma comissão especial para apurar as causas do acidente.

A queda do Embraer 190 reacendeu debates sobre a segurança de voos civis em regiões próximas a áreas de conflito. A suspeita de interferência externa, combinada com as dificuldades relatadas durante o voo, destaca os riscos enfrentados por aeronaves comerciais em zonas de instabilidade militar.

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