CULTURA

 




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Cinema: O crepúsculo do macho

Duas repórteres e um cinegrafista são sequestrados ao investigarem um senador corrupto. A política é central em Serra das Almas – e uma transformação: a fraternidade entre os homens dá lugar a rancores antes silenciados; e a rivalidade feminina, a solidariedade e ação coletiva

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Serra das almas, de Lírio Ferreira, que estreia nesta quinta-feira, traz tudo aquilo que o cinema pernambucano nos tem oferecido de melhor: uma situação dramática em que se entrechocam personagens de várias extrações sociais, evidenciando a permanência de antigas estruturas de dominação, ao mesmo tempo em que deixa entrever possíveis forças de mudança. Um cinema inquieto e visceral, mas ancorado numa leitura pertinente da história.

A situação em questão pode ser resumida assim: duas repórteres e um cinegrafista são sequestrados por bandidos quando faziam uma matéria sobre o envolvimento entre um senador corrupto (Bruno Garcia) e uma quadrilha de traficantes de diamantes.


Levadas para uma casa isolada no meio do mato (a tal Serra das Almas), a repórter Samantha (Julia Stockler) e sua estagiária Luísa (Pally Siqueira) ficam à mercê dos impiedosos Gislano (Ravel Andrade) e Charles (David Santos), que trabalham de seguranças do tal senador ao mesmo em que cuidam de seus interesses escusos no mundo do crime. A casa é de um casal pacato, Ricardo (Jorge Neto) e Vera (Mari Oliveira), dominado pelos bandidos por um misto de amizade antiga e intimidação.

Jogo de contrastes

Num jogo de contrastes bem ao gosto do diretor Lírio Ferreira, contrapõem-se logo no início, em montagem paralela, duas sequências aparentemente disparatadas: Vera imersa na quietude da natureza, nadando num lago, e a fuga alucinada dos bandidos numa van roubada, com armas apontadas para as moças sequestradas. Logo esses dois mundos vão colidir, se interpenetrar e deixar estragos imprevisíveis.

Não convém antecipar aqui o complexo vaivém temporal em que se revelam pouco a pouco as relações promíscuas entre a política, o empresariado, a mídia e o crime, muito menos revelar a identidade de um personagem lacônico e misterioso (Vertin Moura), incluído por acaso entre os sequestrados.

Em vez disso, é impossível deixar de notar, numa visão de conjunto, que existem dois grupos distintos de personagens, o dos homens e o das mulheres, e que esses grupos perfazem movimentos opostos: entre os homens, a aparente fraternidade camarada do início acaba dando lugar à explosão de rancores e ressentimentos fermentados em silêncio; entre as mulheres, a rivalidade hostil e a troca de farpas são substituídas pela solidariedade e pela ação coletiva. São elas, ao que parece, a semente da mudança diante da machulência fratricida dos rapazes.

Fundo e figura

Como de costume, Lírio Ferreira exibe aqui sua habilidade em tecer uma relação orgânica entre os personagens e o ambiente, entre fundo e figura, e em dotar de uma vibração própria cada uma de suas criaturas, de tal maneira que tenham um comportamento imprevisível, mas no fim das contas lógico, ou no mínimo verossímil. A apoteose de violência das sequências finais poderia lembrar Tarantino, se não tivesse havido antes a construção paciente do contexto social e dramático que conduziria àquele desfecho.

Há, antes de tudo, o prazer evidente do cineasta em criar imagens belas e instigantes em si mesmas, como a da vaca que persegue Vera pelos campos na primeira sequência e que retorna no final como uma piada interna, um enigma, um piscar de olhos, talvez, para o cinema de Buñuel.

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Indígenas, hidrelétricas e um rio sem pescado

Entre o Cerrado e a Amazônia, complexo de hidrelétricas afeta base alimentar dos Enore Nawe – agora, obrigados a comprar peixes de tanques e represas privadas. Além da subsistência, sofrem os rituais e seu modo de vida. Empresas respondem na dialética da bala

Por Tulio Paniago

“Tinha muito piau, trairão, pacu, matrinxã, jaú, pintado, cachara, curimba… Mas depois que construíram as PCHs, sumiu tudo”, relata Lalokwarise Detalikwaene, liderança do povo Enawene Nawe, cujo território está localizado no noroeste de Mato Grosso, zona de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. A diminuição dos peixes coincide com a instalação, a partir de 2007, do chamado Complexo Energético do Juruena, composto, até então, por oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) pertencentes a duas gigantes do agronegócio: a Bom Futuro e a Amaggi.

A dieta enawene é composta basicamente por peixes, tubérculos, milho e mel. Além da importância nutricional por ser a principal fonte de proteínas, o peixe é essencial para a reprodução cultural do povo, afinal é um dos elementos centrais para a realização de rituais sagrados que, na cultura dos Enawene Nawe, mantêm a harmonia com o mundo espiritual, evitando que sejam acometidos por doenças, tragédias, colheitas, pescas fracassadas e males em geral. “Os espíritos ficam bravos se a gente não faz ritual. Crianças vão morrer, o chefe vai morrer, mulheres também vão morrer. Antigamente a gente pegava muitos peixes para os espíritos, mas agora está ruim. A gente vai pescar e não pega nada e também não conseguimos pegar mel. Como vamos tratar os espíritos e nossa família?”, questiona Lalokwarise Detalikwaenê.


A escassez de um alimento físico e espiritual

Por meio de um ciclo anual de rituais, os Enawene Nawe estabelecem uma relação de troca constante com entidades subterrâneas (Yakairity) e celestes (Enore Nawe). Eles organizam o trabalho de forma a produzir alimentos para o consumo cotidiano e para serem oferecidos durante rituais que duram meses. “O Yakairity entra na gente, come, bebe e canta. Depois volta para baixo da terra e dorme”, explica uma liderança no documentário O Banquete dos Espíritos, de 1995, sobre o ritual Yãokwa, que dura cerca de sete meses e é registrado como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e como patrimônio cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Porém, desde a construção das hidrelétricas, a população de peixes diminuiu gradativamente e hoje os Enawene Nawe são obrigados a comprar o pescado de tanques e represas para garantir os rituais e, consequentemente, o tenso equilíbrio cosmológico que rege suas vidas.

Povo Enawenê Nawê durante ritual.
Crédito: Marcus Malthe – Greenpeace

“Eles convivem com dois tipos de seres superiores. Os Enore Nawe habitam o alto e são potencialmente terapêuticos, inclusive são a eles que os pajés se associam para curar doenças. E os Yakairity são os donos dos recursos naturais, dos acidentes geográficos, mas são extremamente patogênicos, vorazes e exigentes. É nessa estrutura cosmológica que entram os peixes, que são a principal oferenda para esses dois grupos. Os rituais são os principais instrumentos para a manutenção dessa harmonia, nos quais são ofertadas danças, músicas e muita comida. A existência Enawene está ligada, quase que totalmente, a essa tentativa de manter a harmonia com esses seres”, explica Fausto Campolli, indigenista do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que trabalha com o povo indígena desde o início da década de 1990.

Uma compensação que não compensa

Os Enawene Nawe recorrem, há alguns anos, à compra de peixes de piscicultura, afinal a quantidade de peixes nos rios do território diminui drasticamente desde a instalação do complexo. Conforme explicado pelos indígenas, as entidades já ficam descontentes com o fato de as oferendas não serem mais pescadas nos rios da região. Não bastasse o aspecto espiritual, o alto custo do peixe é incompatível com a renda local, colocando em risco a saúde financeira da comunidade. Nesse sentido, eles recebem uma compensação financeira da Amaggi e da Bom Futuro em razão dos impactos gerados pelas PCHs, porém esse recurso tem sido insuficiente até mesmo para garantir a quantidade de peixe necessária para a realização dos rituais. Em outras palavras, a compensação financeira paga pelas empresas nem sequer garante a compra do alimento, cuja escassez lhes é de responsabilidade direta. Por isso, os Enawene Nawe reivindicam o reajuste dessa compensação.

Atualmente, o repasse é de aproximadamente R$ 36 mil por mês, o que se mostra insuficiente para uma população de 1,4 mil pessoas, que precisa de 78 toneladas de peixe anualmente (6,5 toneladas por mês) para cumprir o calendário de rituais, conforme dados do Monitoramento da Atividade Pesqueira na Terra Indígena Enawenê-Nawê. “Não fomos nós que pedimos para construir as usinas, foi a empresa que pediu para poder construir. A empresa está ganhando com a usina que nós deixamos construir, então a gente também quer ganhar uma compensação permanente para nossos rituais”, explica Holikiari Enawene.

“Estamos há 12 anos com esse acordo, mas agora estamos pedindo um reajuste, porque não é mais suficiente”, complementa Holikiali Enawene. Por força de uma determinação imposta pelo Ministério Público Federal (MPF), o acordo mencionado – um Termo de Audiência e Conciliação (TAC) – foi firmado em 2012. Considerando os possíveis impactos gerados pela instalação do complexo hidrelétrico, foi estabelecido um montante de R$ 600 mil para cada PCH, totalizando R$ 4,8 milhões, valor a ser pago em parcelas mensais durante 20 anos, ou seja, até outubro de 2032. A quantia inicial era de R$ 20 mil, reajustada ao longo dos anos conforme as tendências inflacionárias.

Em projeções atualizadas, seriam necessários R$ 1,95 milhão por ano para garantir as 78 toneladas de peixe, entretanto a compensação atualmente é de apenas R$ 432 mil. Portanto, o valor pago pelas bilionárias do agronegócio supre apenas 22% da demanda anual dos rituais. “Se você dividir esse valor por indivíduo, vai dar menos de um real por dia”, contabiliza Fausto Campolli.


Segundo levantamento do antropólogo Márcio Silva, a população Enawene Nawe costuma dobrar de tamanho num intervalo de 10 a 15 anos. A partir desse prognóstico, estima-se que, por volta de 2040, a população terá passado da marca de quatro mil habitantes, e o custo com o peixe, considerando o valor vigente, será de quase R$ 9 milhões por ano. Diante desse contexto, o povo tem se organizado para cobrar das empresas reajustes no acordo. Eles exigem que a compensação seja permanente (e não só durante 20 anos) e que o valor seja condizente com as demandas dos rituais e com os impactos gerados.

“Nós queremos um reajuste de R$ 400 mil por mês para a manutenção dos rituais e da alimentação. Nós alimentamos a comunidade juntamente dos espíritos. O ritual só faz com peixe, não podemos fazer sem. Antes das usinas o peixe era grande, mas quando chegaram as usinas o peixe diminuiu. Agora são pequenos, não crescem mais, ficam magrinhos. Assim não dá pra alimentar e é ruim para o ritual, porque os espíritos querem peixes grandes”, detalha Holikare Enawene.

A dialética da bala

Há anos os Enawene Nawe tentam rediscutir os termos desse acordo com as empresas, que, por sua vez, consideram que não há mais o que ser discutido e não se mostram dispostos a nenhum tipo de concessão, tanto é que as tentativas de diálogo têm sido sistematicamente ignoradas pelos empresários. Assim, inconformados com o descaso com que têm sido tratados, os indígenas organizaram uma manifestação em junho de 2023. A ideia era acampar na entrada de duas PCHs até serem atendidos pelos responsáveis.

Na ocasião, homens, mulheres, idosos e crianças se dirigiam às portas das PCHs quando foram recebidos com tiros de bala de borracha pela equipe de seguranças. Vários indígenas foram feridos. Além da violência física e ofensas racistas, os seguranças queimaram veículos, documentos e até alimentos. “A gente foi fazer manifestação porque já mandamos documentos para a empresa muitas vezes com o nosso pedido, mas não adianta, nunca chega resposta. A gente não levou flecha, não levou borduna, nada, não levamos nada. Eles atiraram e a gente não revidou. A gente não quer briga. Nós queremos resolver o problema para manter a cultura”, desabafou Lalokwarise Detalikwaene Enawene.

Na contramão dos fatos descritos em depoimentos, vídeos e no relatório oficial da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as empresas fizeram Boletim de Ocorrência argumentando que foram coagidas e que houve tentativa de invasão. Embora não haja qualquer registro de violência ou revide por parte dos indígenas, a Bom Futuro classificou a manifestação como ameaça e coação. Em nota, frisou que: “não concorda em ser coagida ou ameaçada a pagar vultuosos valores para que, em contrapartida, não ocorram invasões em suas propriedades” e acrescentou que rechaça “qualquer hipótese de pagamentos infundados e de cobranças mediante coação”.

Diante do ocorrido, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou Ação Civil Pública (ACP) contra as empresas, requerendo o pagamento de indenização no valor total de R$ 20 milhões, sendo R$ 10 milhões a título de danos morais destinados diretamente aos Enawene Nawe, e mais R$ 10 milhões por danos morais coletivos destinados à Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), com destinação específica para políticas públicas em benefício do povo.

Cotidiano do Enawenê Nawê.
Crédito: Marcus Malthe – Greenpeace

Não há margens para um bom futuro

A holding André Amaggi Participações é um conglomerado controlado por cinco famílias herdeiras de André Maggi. É a maior empresa brasileira de grãos e fibras e possui um faturamento superior ao do próprio estado de Mato Grosso, onde está sediada. Em 2022, faturou R$ 47,37 bilhões, um aumento de 24% em relação ao ano anterior, enquanto o estado arrecadou R$ 40,89 bilhões.

Em 2024, a Amaggi produziu 1,4 milhão de toneladas de soja, algodão e milho em 400 mil hectares de lavouras. A empresa também comercializou 23 milhões de toneladas de produtores brasileiros, argentinos, canadenses, estadunidenses e paraguaios. E ainda atua em administração de portos, embarcações, fábricas, armazéns, geração e venda de energia. “Desde que a Amaggi nasceu, a cada oito anos, dobramos o tamanho da empresa”, declarou Judiney Carvalho de Souza, presidente-executivo da Amaggi, à reportagem da Forbes.

Já a Bom Futuro, liderada por Eraí Maggi Scheffer, também membro do mesmo grupo familiar, é dona de mais de 30 fazendas. Produz, por safra, cerca de 1,3 milhão de toneladas de soja e 300 mil toneladas de pluma de algodão em aproximadamente 630 mil hectares de lavouras. Recentemente, a Bom Futuro tem apostado na produção de peixes, justamente o que tem faltado aos Enawene Nawe, inclusive a empresa inaugurou no Mato Grosso um frigorífico específico para pescados, conveniente após a proibição da pesca artesanal no estado.

Pequenas hidrelétricas, grandes negócios

PCHs são usinas de pequeno porte capazes de produzir até 30 mil megawatts. De acordo com especialistas do setor, possuem valor médio de R$ 300 milhões depois de construídas e geram receitas de aproximadamente R$ 20 milhões por ano, sendo que 20% desse montante é destinado a despesas com operação, manutenção e financiamento. Em reportagem publicada no ano de 2008, o jornal Valor Econômico fez um levantamento do potencial de cinco PCHs do complexo (ainda não eram oito) e estimou um ganho de R$ 110 milhões por ano. Incluindo as outras três PCHs na lógica dessa projeção, estima-se um lucro de R$ 176 milhões (sem levar em conta os reajustes inflacionários do período, que devem elevar consideravelmente esse valor).

Descontados os 20% destinados à operação, manutenção e financiamento, o lucro anual das empresas deve girar em torno de R$ 140,8 milhões, portanto o reajuste solicitado pelos indígenas de R$ 400 mil por mês (R$ 4,8 milhões por ano) representaria apenas 3,4% do montante líquido arrecadado pelas empresas.  Considerando a arrecadação das PCHs, o reajuste solicitado pelos indígenas é ínfimo, mas ainda assim as empresas têm se mostrado absolutamente inflexíveis.

“Os empreendedores respeitam o entendimento do povo indígena Enawenê-nawê, todavia tem convicção que essa reivindicação é ilegítima”, diz trecho de uma nota emitida pela Bom Futuro. Quando questionadas sobre a arrecadação das PCHs, as empresas preferem não informar. “Além de não contribuírem para o deslinde da situação, tais informações possuem obrigações legais que demandam e conferem a elas a confidencialidade”, alega a Bom Futuro. A Amaggi também não respondeu a pergunta, apenas pontuou que suas empresas “sempre cumpriram com todas as suas obrigações legais junto aos indígenas” e acrescentou que vem “apoiando de forma voluntária, além de suas obrigações legais, a cultura e rituais da comunidade indígena”.

Além das oito PCHs em operação, ainda estão previstas outras três hidrelétricas para fechar o Complexo Energético do Juruena, totalizando em onze empreendimentos nos arredores da terra indígena. O conjunto é formado por 9 PCHs (Divisa, Ilha Comprida, Segredo, Rondon, Parecis, Sapezal, Cidezal, Telegráfica e Jesuíta) e 2 UHEs (Juruena e Mato Grosso). Quase todas as PCHs em operação estão localizadas em um trecho de aproximadamente 70 quilômetros do rio Juruena, com exceção da PCH Divisa, que opera em um de seus afluentes, o rio Formiga.

Dos três projetos ainda previstos, dois são Usinas Hidrelétricas (UHEs Juruena e Cachoeirão), empreendimentos bem maiores do que as PCHs, uma vez que são capazes de operar com potência acima de 30 MW. A UHE Juruena está em processo de licenciamento e a UHE Cachoeirão está prestes a entrar nesta mesma etapa. O último nome da lista das que estão em planejamento é a PCH Jesuíta, que também está em processo de licenciamento. “Falta uma PCH e duas UHEs pra matar o Complexo Juruena. E é literalmente matar mesmo, porque vão matar o rio”, avalia Fausto Campolli.

O rio não está para peixe

Há alguns anos, os Enawene Nawe não têm peixes suficientes para os rituais e lutam para conseguir reajustar o valor da compensação. Porém, quando os empreendimentos ainda não tinham saído do papel, os responsáveis garantiram que não haveria nenhum prejuízo aos indígenas. De acordo com estudos encomendados à época pelas empresas, as terras indígenas não sofreriam impactos ambientais. Entretanto, em 2006, o MPF sustentou que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema-MT), durante os processos de licenciamento das obras, teria violado preceitos ambientais e constitucionais.

Lílian Ferreira dos Santos, então superintendente de infraestrutura, mineração, indústrias e serviços da Sema-MT, afirmou que a pasta seguiu todos os procedimentos legais do licenciamento e assegurou que os povos indígenas não seriam afetados. “Não haverá impactos diretos às terras indígenas. A PCH mais próxima fica a 40 quilômetros”. No ano de 2012, em audiência na Justiça Federal, Guilherme Moura Müller, coordenador de Gestão Ambiental dos Empreendimentos e responsável por todos os estudos de impacto causado pelas usinas, ratificou que as consequências seriam praticamente imperceptíveis: “O impacto é de baixa magnitude e não vai interferir diretamente na vida dos índios”.

Curiosamente, os resultados dos estudos encomendados pelas empresas foram na contramão do relatório elaborado pelo biólogo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Francisco de Arruda Machado, especialista em peixes e doutor em ecologia. Em 2006, antes da implantação das usinas, Francisco foi contratado para fazer um levantamento de possíveis impactos causados pelas empresas e apontou que os barramentos impediriam o processo migratório de peixes em períodos reprodutivos, causando impactos irreversíveis às suas populações. Todavia, sua análise foi ignorada.

Peixes grandes nos bastidores

Importantes nomes da política mato-grossense são responsáveis pela atual situação vivida pelo povo Enawene Nawe. Essa trama, que teve início há mais de duas décadas, está detalhada no Mapeamento dos financiamentos a empreendimentos hidrelétricos na Bacia do rio Juruena-MT, relatório técnico publicado em 2022 pela pesquisadora Vanessa Parreira Perin. Tudo começou em 2001, quando Blairo Maggi, então agropecuarista e suplente do senador Jonas Pinheiro, criou a empresa Maggi Energia e deu início a dois inventários de projetos hidrelétricos na região. Após a conclusão dos estudos, foram identificados doze pontos em potencial, dos quais onze se mostraram economicamente viáveis para a exploração. Então, em parceria com as empresas Linear Participações e Incorporações e MCA Energia e Barragem, a Maggi Energia formou o Consórcio Juruena.

Para conseguir tirar uma PCH do papel é preciso que ela seja licenciada, o que significa passar por uma série de etapas, pois se trata de uma concessão pública outorgada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e com autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Pelos trâmites normais, o processo de aprovação chega a levar dois anos. Mas o consórcio empresarial obteve a Licença Prévia das PCHs em apenas três meses. E aproximadamente um mês mais tarde já havia adquirido também a Licença de Instalação. Um dos principais interessados, Blairo Maggi, era governador de Mato Grosso nesse mesmo período.

Em 2005, as licenças do Complexo Juruena foram colocadas à venda pelo Global Bank. A companhia Juruena Participações e Investimentos S.A. – holding criada no mesmo ano pela empresa MCA – adquiriu o controle de cinco PCHs do complexo (Cidezal, Sapezal, Telegráfica, Parecis e Rondon). A MCA pertence à família do deputado Carlos Avallone (PSDB). Já os demais projetos (Jesuíta, Ilha Comprida, Segredo e Divisa) continuaram sob responsabilidade das empresas Maggi Energia e Linear Participações e Investimentos, esta última de propriedade do empresário José Geraldo Nonino.

Em 2014, Carlos Avallone e seu irmão, Marcelo Avallone, proprietários da MCA, foram indiciados na Operação Lava Jato. A Juruena S.A. foi alvo de busca e apreensão por parte da Polícia Federal. O grupo já respondia a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho por explorar 78 trabalhadores em condições de trabalho que se assemelham à escravidão no canteiro de obras das PCHs Ilha Comprida e Segredo, pelas quais foram condenados, em 2018, ao pagamento de R$ 2,2 milhões por danos morais coletivos.

Após todo esse imbróglio, em 2019, a razão social da companhia foi alterada para Hydria Participações e Investimentos S.A. Em seguida, foi adquirida por outro gigante do agronegócio, o Grupo Bom Futuro (Bom Futuro Energia S.A, braço energético da holding homônima), cujos proprietários são primos de Blairo, no caso Eraí Maggi, Elusmar Maggi e Fernando Maggi Sheffer. Assim, cinco PCHs do Projeto Juruena saíram do controle de grupos empresariais e políticos ligados ao setor da construção civil e voltaram para as mãos do agronegócio. Levando em conta que as outras três PCHs são de propriedade da Amaggi, pode-se afirmar que a mesma família toca todo o Complexo Juruena.

Lucros privados, investimentos públicos

E por que esse grupo empresarial e familiar bilionário com tentáculos espalhados em diferentes setores produtivos e grande influência política foi se enveredar no ramo energético? Na monografia Alta Tensão na Floresta: Os Enawenê Nawê e o Complexo Hidrelétrico Juruena, apresentada em 2010, a antropóloga Juliana de Almeida sustenta que a energia gerada visa reduzir os custos de produção das empresas da família Maggi e o excedente atende parte da demanda energética regional, gerando lucros e dividendos aos acionistas.

E de onde vieram os recursos para pôr de pé um complexo hidrelétrico milionário? Considerando as receitas e os bens do grupo empresarial, tende-se a imaginar que são recursos próprios. Todavia, em reportagem publicada no site De Olho nos Ruralistas, em fevereiro de 2019, o jornalista Lázaro Thor Borges trouxe detalhes da delação premiada do ex-governador Silval Barbosa, apadrinhado e sucessor de Blairo, na qual admite que as empresas do Consórcio Juruena conseguiram viabilizar boa parte das construções graças a créditos tributários – pagos de forma irregular – na ordem de R$ 75 milhões.

Segundo o ex-governador, Carlos Avallone e José Geraldo Nonino (proprietários, respectivamente, da MCA Energia e Barragem e Linear Participações e Investimentos, empresas que compunham o Consórcio Juruena com a Maggi Energia), o procuraram em 2010 para cobrar o saldo. “O valor foi pago meses depois, com uma condição: 50% do dinheiro retornaria ao governo para que Barbosa quitasse outros débitos ilegais adquiridos na gestão Maggi”, diz trecho da reportagem.

Além dos R$ 75 milhões oriundos, supostamente, do pagamento ilegal de créditos tributários, os empreendimentos também receberam R$ 360 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de um parque gerador de energia elétrica. E as empresas ainda conseguiram acessar financiamentos do BNDES na modalidade Project Finance, que totalizaram R$ 84,4 milhões. Como as PCHs do Consórcio Juruena fizeram parte do conjunto de iniciativas apoiadas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-1), foram consideradas como projetos prioritários para o governo federal à época, daí o motivo de conseguirem acessar R$ 444,4 milhões somente via BNDES.

A influência política de Blairo Maggi também pode ter contribuído. “A passagem de Blairo Maggi pelo senado federal e pelo governo de Mato Grosso são imprescindíveis para a consolidação de seus investimentos empresariais. Maggi, já ocupando o posto de governador de Mato Grosso, insere duas UHEs do Complexo Juruena no PAC, obtém apoio do STF para liberar as obras embargadas por uma liminar do MPF em 2008 e consegue também agilizar o licenciamento das obras através da SEMA-MT”, indica Juliana de Almeida em sua monografia.

Na bacia das almas, povos em luta

Quando se passa a limpo todo esse histórico, desde a implementação do complexo de hidrelétricas até o atual impasse sobre o reajuste da compensação, percebe-se como o modo de vida Enawene Nawe tem sido significativamente afetado por decisões tomadas por pessoas e empresas que desconsideram a presença e ocupação indígena desde os tempos imemoriais na bacia do rio Juruena.

Aliás, trata-se da mais extensa bacia hidrográfica do Mato Grosso (19 milhões de hectares), que concentra 23 territórios de mais de uma dezena de povos indígenas. A bacia do Juruena é alvo de 179 projetos de usinas hidrelétricas. Entre 2019 e 2023, houve o acréscimo de 51 empreendimentos, o que representa um aumento de 39,8%, uma média de mais de dez novos projetos por ano. Os impactos causados por esses empreendimentos ameaçam a soberania alimentar e a reprodução cultural dos povos da região.

Importante lembrar que nem todos saíram do papel, então ainda há tempo para impedir o avanço de algumas dessas hidrelétricas, como ocorreu com a UHE Castanheira. Dos 179 projetos, 20% estão em operação, 10% em construção e os outros 70% se encontram em fase de planejamento. Os dados são do Boletim de Monitoramento de Pressões e Ameaças às Terras Indígenas na Bacia do rio Juruena, produzido pela Operação Amazônia Nativa (OPAN).

A implantação de tantas hidrelétricas contribui para intensificar a ocupação não indígena no entorno dos territórios, acarretando o aumento significativo de outras pressões e ameaças. A fauna, até então abundante, tem diminuído expressivamente diante do aumento constante do desmatamento. Os agrotóxicos utilizados em fazendas têm poluído rios e nascentes, afetando a reprodução de espécies. Houve também a modificação da paisagem com a interrupção de cursos d’água, alterando a dinâmica e o equilíbrio do ecossistema aquático da bacia do Juruena.

É neste cenário que os Enawene Nawe, convencidos à época de que não seriam prejudicados, agora lutam pelo reajuste de uma compensação insignificante comparada ao lucro de empresas que os deixaram sem peixe suficiente para alimentação e rituais. A instalação de um complexo de, por enquanto, oito PCHs provocou a perda de áreas de desova e bloqueou rotas migratórias das principais espécies de peixes consumidos pelos Enawene Nawe. Além do déficit nutricional, uma vez que se trata da principal fonte proteica do povo, há de se destacar desarranjos de ordem espiritual, afinal a escassez gera conflitos com entidades que orientam seu mundo cosmológico, portanto os prejuízos são ambientais, nutricionais e sócio-culturais.

“Brancos querem fazer onze usinas no nosso rio, mas aí acabaram os peixes e eles não querem pagar a compensação para a gente manter os rituais. Ritual não faz acontecer uma coisa, ritual faz muitas coisas pra nós. A gente busca os meios naturais na floresta e no rio. A gente pega os peixes pra oferecer durante os rituais. Enawene Nawe são conhecidos pela espiritualidade. Muita coisa mudou, antes a gente usava canoa, depois barcos e agora estamos usando veículos para buscar os peixes, mas os rituais não mudam”, concluiu Wayali Wesley Enawenê.

Tulio Paniago é jornalista e trabalho no setor de comunicação da OPAN – Operação Amazônia Nativa.

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Mapas Culturais é instalado em mais quatro estados e capacita gestores para fortalecer setor cultural

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O Mapas Culturais, ferramenta digital voltada para a gestão de políticas públicas de fomento à cultura, acaba de ser instalada nos estados do Acre, Maranhão, Tocantins e Roraima. A partir de agora, gestores culturais dessas regiões contam com um sistema integrado para mapeamento, cadastramento e gestão de editais culturais, incluindo políticas de fomento como a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB).

Você sabia que o Ministério da Cultura tem uma ferramenta digital voltada para a gestão de políticas públicas de fomento à cultura? Essa ferramenta se chama Mapas Culturais e o sistema possui uma série de funcionalidades para auxiliar os gestores. 

“O Mapas Culturais é uma plataforma de gestão da política cultural especializado para dar conta do fluxo de fomento, do mapeamento, cadastro de agentes culturais, da gestão de editais. E com ele é possível acompanhar desde o momento de inscrição até o monitoramento e prestação de contas dos projetos culturais”, explica a coordenadora-geral de Projetos Estratégicos da Secretaria de Gestão Estratégica (SGE) do MinC, Sofia Leonor.
A plataforma já é utilizada em diversos estados e municípios, como São Paulo, João Pessoa, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife. Agora, os gestores culturais dos estados do Acre, Maranhão, Tocantins e Roraima também vão contar com a plataforma.

A implementação da ferramenta representa um avanço significativo para a gestão cultural no Brasil, como destaca Sofia: “Com esse investimento, o MinC aposta na qualificação das políticas públicas de cultura por meio da modernização, inovação, por meio da utilização de sistemas para promover mais eficiência e efetividade na gestão das políticas culturais. Então, tem um processo de otimização da gestão, ampliando e simplificando o acesso à política de fomento por parte dos agentes culturais.” 

O Mapas Culturais vem se consolidando como um dos principais sistemas de democratização do acesso às políticas culturais no país. A ferramenta também desempenha um papel fundamental na promoção e no acesso à informação cultural, como explica a coordenadora de projetos estratégicos do MinC.

“O Mapas facilita o cadastramento, mapeamento, e principalmente a gestão dos editais de fomento à cultura, porque ele concentra dentro todas as informações sobre os agentes e projetos culturais. Além disso, por essa centralização, amplia a visibilidade das ações dos agentes culturais, seus projetos e suas entregas. Então, é muito importante a gente avançar nessas implantações locais”, acrescenta a coordenadora-geral de Projetos Estratégicos.

Mapas Culturais: como se cadastrar?

Para se cadastrar no Mapas Culturais acesse o site do MinC (www.gov.br/cultura) na aba assuntos mapas culturais. No site também é possível obter mais informações.

Esta é uma realização do Ministério da Cultura por meio da Secretaria de Gestão Estratégica (SGE), em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), dentro do projeto Soluções Digitais para Mapeamento e Gestão Cultural.
 


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Brasil negro, memória branca

Jornalista e escritor expõe a dificuldade de rever o passado, num país “branco do ponto de vista da documentação histórica”. É como encarar a morte social. Por isso, primeiro passo é martelar como a elite brasileira descende de senhores de escravos

Laurentino Gomes em entrevista a Amanda Audi, na Pública

Se um extraterrestre pousasse no Brasil e se baseasse apenas em livros escolares, filmes e livros clássicos, provavelmente pensaria que o país é majoritariamente branco e que a escravidão aqui, diferentemente de outros lugares, não teria sido tão ruim assim.

É o que se vê, por exemplo, em Orfeu negro, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960, a Palma de Ouro em Cannes e o Globo de Ouro. Protagonizado por atores negros, o filme levou ao resto do mundo a ideia de que o Brasil seria uma “democracia mestiça”. E no livro Casa-grande & senzala, provavelmente o mais influente sobre a escravidão no Brasil, Gilberto Freyre defende que a sociedade brasileira é fundada na miscigenação entre brancos, negros e indígenas.


Mas é só viver um pouquinho nestas terras para a imagem de um país sem conflitos raciais cair por terra. Na verdade, a história brasileira é fundada em conflitos e opressão, como mostram as reportagens do Projeto Escravizadores, da Agência Pública. O Brasil teve o maior contingente de escravizados das Américas (quase cinco milhões de pessoas) e foi o último a abolir o sistema, sem nenhuma política de inclusão daquelas pessoas à sociedade. O resultado é um dos países mais desiguais do mundo, no qual o número de pretos vivendo na pobreza é o dobro do de brancos, e em que seis em cada dez negros alegam ter sofrido racismo no ano passado.

O descompasso com a realidade se deve ao fato de a história da escravidão no Brasil ter sido manipulada e romantizada, fruto de um “projeto nacional de esquecimento”, defende o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor da trilogia Escravidão. “Tem um ditado africano que diz que, enquanto o leão não aprender a escrever, a história será contada pelo caçador. E nós aprendemos a versão do colonizador branco”, afirma.

Para ele, o Brasil ainda não deu certo porque nunca refletiu verdadeiramente sobre suas raízes escravocratas, e que é só discutindo esse passado doloroso que, um dia, o Brasil poderá se tornar mais justo. “É um chamado à realidade, para a gente não levar adiante esse projeto nacional de autoengano, que só complica a construção do futuro do Brasil”, afirma.

Por que, na sua visão, a escravidão no Brasil ainda é pouco estudada e vista como um assunto “menor”?

Eu acho que nós temos no Brasil um projeto nacional de esquecimento. Não só de esquecimento, mas de manipulação deliberada da história. A memória pode ser uma ferramenta de construção de um projeto de poder, de justificar a submissão de um grupo de seres humanos pelo outro. O Brasil formou o maior território escravista do hemisfério ocidental. Cerca de 40% de todos os africanos que vieram para a América tiveram como destino o Brasil. E foi o último país a acabar com a escravidão.

Então, criou-se uma mitologia muito forte, segundo a qual, primeiro, a nossa escravidão seria gentil, patriarcal. Uma escravidão em que nós nos misturamos muito pela miscigenação. Então, a escravidão não seria tão violenta quanto nos Estados Unidos, quanto no Caribe.

O que é uma balela, certo?


A escravidão brasileira foi violentíssima, tanto quanto em qualquer outro território escravista. O meio de manter milhões e milhões de pessoas submissas no cativeiro foi o chicote. O chicote ou aquela infinidade de instrumentos de tortura, que incluíam correntes, argolas, torniquetes, uma coisa absurda. Mas essa mitologia de que a escravidão brasileira foi boazinha e patriarcal, que é muito forte no livro Casa-grande & senzala, do Gilberto Freyre, tem origem em uma outra mitologia que é a chamada democracia racial brasileira. Como se não tivéssemos um problema racial, o que não é verdade.

O Brasil é um dos países mais segregados do mundo. E isso se reflete na escola. Até recentemente, nos currículos escolares, a escravidão era um não assunto. Se eu passei pela Lei Áurea até o ensino médio, foi muito. Eu só realmente entendi a escravidão quando comecei a trabalhar profissionalmente nesse assunto, como pesquisador. A gente finge que não aconteceu. Temos uma visão de “vamos olhar para o futuro, o passado já acabou”.

Acho que um dos frutos da democracia no Brasil é justamente rever o passado. Mas isso, para mim, é uma grande notícia, porque vai nos tornar um pouco mais maduros, um pouco menos infantilizados ao olhar as nossas raízes e criar mitos a respeito do que nós gostaríamos de ter sido, mas não fomos. A elite brasileira, com raríssimas exceções, de direita, a esquerda e o centro, é de senhores de escravizados.

Todos nós, no Brasil, temos a ver com a escravidão, porque ou somos descendentes de pessoas escravizadas, no caso dos indígenas e africanos, ou somos descendentes de escravizadores, e aí a imensa maioria dos brancos, ou descendentes de imigrantes, que é o meu caso, por exemplo, que chegaram ao Brasil para substituir a mão de obra escravizada depois da abolição. Por isso que eu fico feliz com essa série de vocês [Projeto Escravizadores]. É um chamado à realidade, para a gente não levar adiante esse projeto nacional de autoengano, que só complica a construção do futuro do Brasil.

Por que isso acontece?

A gente recebe a versão do caçador. No primeiro volume de Escravidão, eu cito um ditado africano que diz que, enquanto o leão não aprender a escrever, a história será contada pelo caçador. Nós aprendemos a versão do colonizador branco, que não conta a história da escravidão com todos os seus horrores, os seus números, a sua extensão. Essa história foi sonegada até muito recentemente nos livros escolares e nas salas de aula. E, quando foi contada, era romantizada pelo olhar branco. Então, mesmo as obras abolicionistas mais importantes acabam tendo um viés branco, um olhar do branco que tenta redimir, entre aspas, uma raça oprimida.

O verdadeiro herói é o branco, não é o negro. O agente da justiça, o agente da transformação, não é o negro, é o branco. O movimento abolicionista tem esse viés. Nas obras do Joaquim Nabuco, por exemplo, tem uma denúncia forte da escravidão, muito boa, uma documentação histórica muito preciosa. Mas o protagonista é o branco. Dos quatro principais abolicionistas brasileiros, três eram negros. São eles: Joaquim Nabuco, Luis Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. Hoje o Joaquim Nabuco, que era branco, tem uma proeminência muito maior do que os outros três negros.

Desde que começamos a publicar as reportagens do Projeto Escravizadores, uma das coisas que a gente mais escuta é: “Mas por que mexer nisso? As pessoas de agora têm que pagar pelos erros do passado?”

Existe um pacto que se associa a “eu não escravizei ninguém”. Mas, se os seus antepassados escravizaram, você tem uma responsabilidade de olhar para o passado, porque a escravidão tem consequências no presente. Se o Brasil é hoje um dos países mais desiguais do mundo, e pobreza no Brasil é sinônimo de negritude, significa que a escravidão não é um assunto encerrado e congelado no passado, é uma realidade presente no Brasil de hoje. E, se ela é hoje o nosso principal desafio, a nossa desigualdade social resultante da segregação racial, nós temos que olhar para o passado e entender que a elite brasileira tem uma licença no sistema escravista, fica mais fácil entender o Brasil de hoje e melhor para construir o Brasil do futuro também.

Nós temos relações escravistas nas relações do Estado, no comportamento do Estado, no comportamento privado. Nós somos um povo com raízes escravistas, a nossa elite é, infelizmente o nosso povo também é. Então, a melhor coisa que a gente faz é olhar para o passado e assumir que esse passado não deixou de existir, não evaporou. É uma realidade presente hoje nas ruas, na cidade, no campo. É só olhar e você vê a herança da escravidão.

O que o senhor acha sobre medidas de reparação de justiça social? O que deveria ser feito?

Sou a favor. O Brasil teve uma ditadura militar durante 20 anos. Depois nós tivemos uma Comissão da Verdade que apurou os crimes cometidos pela ditadura e recomendou uma série de medidas. Pouquíssimas foram adotadas e, em razão disso, a impunidade no meio militar continua até hoje. Isso explica o golpismo do meio militar durante o governo Bolsonaro, porque nunca houve a devida responsabilização. Isso vale para a escravidão também.

As consequências da escravidão continuam presentes entre nós e impedindo que o Brasil se torne um país democrático de fato, e rico e desenvolvido e justo. Então, é muito importante que não apenas nós olhemos o passado, tiremos lições, assumamos responsabilidades pelo que aconteceu, mas que, na medida do possível, com políticas públicas adequadas, nós tomemos providências. Existem inúmeras maneiras de fazer isso. Uma delas são as chamadas políticas de reparação, especialmente a política de cotas.

Existe um nível de pobreza no Brasil que está principalmente associado à cor da pele, em que a pessoa sozinha não consegue se promover. A pessoa que está mergulhada na miséria, que faz parte de uma família que não tem condições de moradia, educação, saúde e oportunidades adequadas, ela não vai conseguir se promover sozinha. Nós temos que apoiar a lei de cotas pelo seu aspecto simbólico – é a primeira vez que o Brasil tenta corrigir a sua herança escravocrata –, mas também porque ela dá resultados. As estatísticas mostram que tem aumentado o número de estudantes, mestres, doutores, diretores, altos funcionários da organização pública, negros.

O correto seria que todos os brasileiros tivessem condições iguais de competir pelas melhores oportunidades na vida adulta, mas isso não existe. Então, a política de cotas e outras políticas de reparação, como, por exemplo, o Bolsa Família, tentam corrigir no meio um processo que está viciado na sua origem. Mas não pode ser permanente. Se daqui a 500 anos a gente tiver ainda política de cotas e reparação, significa que nós falhamos totalmente.

Então, o senhor acha que existe a possibilidade de algum dia o Brasil ser uma nação mais igualitária, e a única maneira de chegar nisso é por meio dessas políticas de cotas e reparação?

Eu acho que sim. Por incrível que pareça, sou otimista. Embora tenha me debruçado sobre um período muito sombrio da história do Brasil, eu acho que nós temos uma grande novidade em andamento, que são 40 anos de democracia. Porque tudo o que nós vimos até o fim da ditadura militar foi uma continuação de um projeto de submissão, de exploração de uma parte da imensa maioria do povo brasileiro por uma elite muito pequena, muito branca, que dominava todo o aparato do Estado, todas as oportunidades também na área privada, e não permitia que os demais brasileiros sequer se manifestassem, participassem politicamente na construção do futuro. A democracia está mudando isso.

Não é à toa que esteja se tornando mais comum discutir as nossas raízes, a corrupção, a violência, a escravidão, a misoginia brasileira. Persistir na democracia é a única maneira de fazer com que esse país, no futuro, seja mais justo e mais igualitário.

Para as matérias do projeto Escravizadores, nós conseguimos traçar com certa tranquilidade a genealogia da elite branca. Mas dos negros e indígenas não tem praticamente nada de registros oficiais. Como você fez a sua pesquisa? Teve que se basear em relatos orais?

O Brasil é um país branco do ponto de vista da documentação histórica. Se você quiser construir a minha árvore genealógica ou a sua, é fácil. Tem registro em cartório, certidão de nascimento, casamento, óbito. No caso da escravidão, não.

O africano era arrancado de suas raízes e passava por um processo de morte social, como disse o pesquisador de Harvard Orlando Patterson. Ele tinha que trocar de nome, religião, chegava até a ser marcado a ferro quente, como um animal. Ele nunca mais tinha contato com a sua cultura, sua família, sua língua, suas crenças religiosas. Um processo completo de desenraizamento. Isso incluía a documentação, que não existia. E boa parte da documentação que existiu foi mandada incinerar pelo Rui Barbosa, depois da proclamação da República.

Para pesquisar sobre essas pessoas, você tem pouca documentação, algumas certidões de batizado nas igrejas, nas irmandades religiosas negras, em documentação de compra e venda de pessoas escravizadas, inventários. Mas essa documentação está sempre corrompida. Porque, geralmente, quando o africano chegava ao Brasil, era obrigado a adotar o nome do seu senhor ou da região da África de onde ele vinha. Depois que eu terminei a trilogia, recebi muitas mensagens de pessoas negras que me pedem ajuda para recuperar suas raízes. Eu respondo que, infelizmente, não consigo ajudar. É muito difícil recuperar essa memória. A memória brasileira é uma memória branca.

Nos últimos anos, a gente tem percebido que muitas pessoas passaram a se identificar como negras, a procurar entender o seu passado. E isso acontece em um momento de levante conservador em todo o mundo. É um contrassenso?

Acho que o que nós estamos vendo hoje no Brasil e no mundo é um tipo de pororoca. Tem uma onda que volta e tenta encobrir o rio, mas o rio é bem grande. Há o nascimento de uma nova consciência de gênero, classe, racial, um mundo mais conectado, com democratização da cultura, da informação, do entretenimento. E há uma reação das elites conservadoras que não aceitam a mudança em curso.

Hoje, há grupos sociais se posicionando e discutindo abertamente e pressionando por políticas públicas novas, por comportamentos novos. Isso no passado não era permitido. Mas eu acho que é impossível de conter a mudança. Hoje nós vivemos num ambiente de muita pluralidade, de uma transformação na consciência cívica das pessoas. Isso vai gerar mais resultados no longo prazo do que uma reação conservadora, que eu acho que é conjuntural, é momentânea.

Então não tem como a gente retroceder tanto a ponto de perdermos a democracia?

Acho que não, mas esse processo não é linear. O ex-presidente Barack Obama falou numa entrevista, logo depois da eleição do primeiro mandato de Donald Trump, que a democracia é uma linha em zigue-zague. A gente avança, retrocede, tenta de novo, erra, aí, depois, acerta. A Alemanha nazista, por exemplo, aconteceu num dos países mais avançados da Europa em termos de ciência e cultura. Podem haver retrocessos momentâneos, como está havendo, mas, no longo prazo, a justiça e a democracia vão prevalecer.

Eu tenho 68 anos, o mundo que eu sonhava não aconteceu. Mas, ainda assim, sou otimista. Não acho que o futuro do Brasil seja de opressão e de ditadura. Acho que é o contrário. Acho que estamos caminhando e persistindo na democracia.

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Cinema: Fúria sagrada

Aos 93, Ruy Guerra exibe vitalidade. Seu novo filme revela o jogo político que envolve empresários vorazes, políticos corruptos, pastores gananciosos e militares saudosos da ditadura. Obra foi investigada pela PF por usar um “sósia de Bolsonaro”

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

O 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, encerrado no último fim de semana, foi uma consagração da diversidade racial, cultural e de gênero nas telas. E também no palco: nunca o venerável Cine Brasília teve a presença de tantas pessoas negras, indígenas e LGBTs apresentando seus filmes e recebendo seus prêmios. Uma autêntica festa inclusiva e libertária.

O grande vencedor do evento foi o longa-metragem pernambucano Salomé, de André Antônio, que atualiza criativamente o mito da princesa bíblica para o contexto da cena queer recifense. Uma história de amor atemporal que mistura romance, ficção científica e policial noirPremiação completa no site do festival.


O triunfo de Salomé foi tão avassalador (melhor filme para o público, a crítica e o júri oficial, além de cinco outros prêmios) que ofuscou os dois outros grandes filmes da competição, Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, e A fúria, de Ruy Guerra e Luciana Mazzotti. É deste último que vamos tratar aqui.

A hora da vingança

A fúria é o terceiro segmento de uma trilogia não planejada que começou com Os fuzis (1964) e teve continuidade com A queda (1978). A ligar os três filmes está o personagem Mário (Nelson Xavier nos dois primeiros, Ricardo Blat no terceiro), que foi um soldado no sertão baiano em Os fuzis e um operário da construção civil no Rio em A queda. Em A fúria ele volta do além-túmulo para se vingar dos ex-companheiros que provocaram sua prisão, tortura e morte. Nesta entrevista, Ruy Guerra fala brevemente sobre a trajetória de seu personagem:

Se os dois primeiros filmes da trilogia tinham uma abordagem essencialmente realista, A fúria é uma alegoria política delirante, quase à maneira de Terra em transe e A idade da terra (ambos de Glauber Rocha). Concentra-se no jogo político que envolve empresários vorazes, políticos corruptos, pastores gananciosos e militares saudosos da ditadura.

A semelhança com a política brasileira recente não será mera coincidência. O filme chegou a ser investigado pela PF durante o governo Bolsonaro depois que circularam fotos do set mostrando um sósia ensanguentado do então presidente.

O que impressiona é antes de tudo a vitalidade juvenil exibida por Ruy Guerra no esplendor de seus 93 anos. A parceria com Luciana Mazzotti, ao que parece, levou-o a renovar seu ímpeto e afiar seus instrumentos. É um filme de uma ousadia ao mesmo tempo temática e formal, que configura um universo à parte, singular, entre o real e a fantasia, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, mediante uma estética expressionista, antinaturalista, na iluminação, na cenografia, na dramaturgia e na mise-en-scène.

Não é uma obra passadista, muito pelo contrário. Todos os temas mais candentes de nossa época – do golpismo político à devastação das florestas, da manipulação religiosa à afirmação da liberdade sexual e de gênero – estão encenados ali.

Atores veteranos

De quebra, o filme traz uma plêiade de atores veteranos que carregam consigo boa parte da história do cinema brasileiro (Lima Duarte, Daniel Filho, Paulo César Pereio, Antônio Pedro, Antônio Pitanga), ao lado de expoentes da geração atual, como Grace Passô (em personagem inspirada em Marielle Franco), Simone Spoladore e Higor Campagnaro. Fragmentos de Os fuzis e de A queda inserem-se aqui e ali, fazendo as vezes de flashbacks.


Embora tenha empolgado o público brasiliense, sendo aplaudido entusiasticamente em cena aberta e ao final, A fúria caiu como um corpo estranho no festival, desconcertando críticos e jurados, que acabaram por lhe conferir o prêmio especial do júri, uma espécie de honraria de consolação. A meu ver, merecia muito mais. Cabe esperar que A fúriaSuçuarana Salomé entrem logo em cartaz e cheguem ao maior número possível de espectadores.

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Cockburn Town: A Joia Histórica de San Salvador, Bahamas

Cockburn Town, a principal cidade da ilha de San Salvador, Bahamas, é um lugar repleto de história e encanto, considerado um dos pontos mais significativos nas Américas em termos de descobrimento. A cidade é conhecida por ser a capital da ilha de San Salvador, local que se acredita ter sido o primeiro ponto de chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo em 1492.

A fundação de Cockburn Town remonta aos séculos posteriores à colonização europeia nas Américas, quando a ilha de San Salvador, inicialmente chamada de Guanahani pelos indígenas Lucaios, começou a se desenvolver sob domínio britânico. A cidade foi nomeada em homenagem a Sir Francis Cockburn, um governador colonial das Bahamas no início do século XIX, refletindo a influência britânica na nomenclatura e administração das ilhas.

Cockburn Town cresceu como um porto e centro de comércio local, especialmente na era em que a exportação de sal e outros produtos marítimos impulsionava a economia das Bahamas. As salinas foram cruciais para o desenvolvimento econômico da cidade, e ainda hoje, vestígios dessas salinas podem ser encontrados em partes da ilha.

Com o passar dos séculos, a cidade manteve um charme histórico, preservando construções de arquitetura colonial, ruas estreitas e edifícios de pedra calcária que refletem o legado britânico. Este centro urbano pequeno e pacato tornou-se o coração cultural e administrativo de San Salvador, desempenhando um papel importante em festividades e eventos locais.

Cockburn Town também atrai muitos turistas devido à sua conexão com a história de Colombo e por estar próxima a marcos como o monumento a Cristóvão Colombo, praias paradisíacas e locais de mergulho que exibem a rica biodiversidade da região. A combinação de um passado marcante com paisagens naturais deslumbrantes faz de Cockburn Town um destino fascinante para aqueles que desejam explorar tanto a história quanto a beleza intocada das Bahamas.

Hoje, a cidade continua sendo um símbolo do encontro entre o Velho e o Novo Mundo e mantém sua relevância como um centro cultural que celebra tanto a herança europeia quanto as tradições locais bahamianas.


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