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Totens de segurança: entenda como funciona o dispositivo que virou tendência nos municípios brasileiros

Matheus Moura

Cada vez mais presentes nos municípios brasileiros, os totens de segurança viraram tendência entre equipamentos tecnológicos utilizados no combate à criminalidade. Em cidades de São Paulo, por exemplo, alguns resultados positivos foram registrados no ano passado. De acordo com informações da Secretaria de Segurança Cidadã de Diadema, as áreas com esse tipo de equipamento apresentaram queda de quase 20% em alguns índices de criminalidade em 2024, na comparação com o ano anterior.

Cada vez mais presentes nos municípios brasileiros, os totens de segurança viraram tendência entre equipamentos tecnológicos utilizados no combate à criminalidade. Em cidades de São Paulo, por exemplo, alguns resultados positivos foram registrados no ano passado. 

De acordo com informações da Secretaria de Segurança Cidadã de Diadema (SP), as áreas com esse tipo de equipamento apresentaram queda de quase 20% em alguns índices de criminalidade em 2024, na comparação com o ano anterior. Considerando os 25 totens da cidade, houve redução em 80% das áreas de abrangência dos equipamentos.

No Distrito Federal, os dispositivos estão em fase de teste. De acordo com o governo local, os equipamentos estão instalados no Setor Comercial Sul e ao lado da Praça do Relógio, em Taguatinga. O período de teste será de 90 dias e os totens foram instalados no dia 24 de dezembro do ano passado. Após esse tempo, serão feitos relatórios e análises para avaliar a efetividade da tecnologia.

Outro exemplo é a cidade de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. De acordo com a prefeitura do município, os equipamentos foram instalados em pontos estratégicos da cidade. A iniciativa faz parte da operação ‘’Verão Seguro’’, que acontece entre os meses de janeiro e fevereiro, período de grande movimentação nas praias locais.

Segundo o secretário municipal da Defesa Social do Cabo, Julierme Veras, a utilização da tecnologia é essencial no combate à criminalidade. “No atual cenário, não há como abrir mão de instrumentos como esses, que nos ajudam na captura de dados importantes e no combate à violência na cidade”, afirmou.

O que são totens de segurança?

Segundo o especialista em segurança pública, Ricardo Bandeira, os totens de segurança são estruturas verticais que contam com equipamentos de vigilância e comunicação, criados com o intuito de aumentar a segurança em áreas públicas e privadas. Segundo ele, os dispositivos funcionam como pontos de monitoramento ostensivo.

“Eles são uma ferramenta muito eficiente e importantíssima para a redução dos índices de violência e criminalidade, pois estão ligados diretamente à tecnologia de inteligência e investigação. Portanto, são eficazes naquilo que se propõem. Logicamente, esses equipamentos devem ser de qualidade, devem ter uma tecnologia atualizada e é fundamental que existam contratos de manutenção desses dispositivos”, pontua.  

Os totens de segurança podem ser integrados pelos seguintes equipamentos:

  • Câmeras de vigilância: capturam imagens em alta resolução e permitem o monitoramento em tempo real, além da gravação de casos. Algumas dessas câmeras têm tecnologia de reconhecimento facial e leitura de placas.
  • Sensores de movimento: detectam atividades suspeitas e podem acionar alertas.
  • Alto-falantes e microfones: permitem a comunicação entre a central de monitoramento e o local onde o totem está instalado. Também possibilitam a emissão de avisos sonoros, assim como a interação com pessoas no local.
  • Botão de pânico: permite que as pessoas acionem diretamente a polícia ou a central de monitoramento em caso de emergência.
  • Sistemas de iluminação: alguns desses equipamentos têm iluminação reforçada com o objetivo de aumentar a visibilidade.

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Segurança Pública: projetos serão analisados no Senado

Lívia Braz

Uma série de projetos de lei, aprovados nos últimos dias de 2024 na Câmara, passam agora pela análise dos senadores na volta do recesso parlamentar, na primeira semana de fevereiro. Seção 8 propostas que tratam desde a saúde mental dos policiais envolvidos em ações de alto estresse até campanhas de combate à violência contra policiais.

Uma série de projetos de lei, aprovados nos últimos dias de 2024 na Câmara, passam agora pela análise dos senadores na volta do recesso parlamentar, na primeira semana de fevereiro. Seção 8 propostas que tratam desde a saúde mental dos policiais envolvidos em ações de alto estresse até campanhas de combate à violência contra policiais.

Um deles, o PL 2.573/2023, trata sobre a previsão de assistência psicológica ou psiquiátrica para agentes de segurança que estiverem envolvidos em atos altamente estressantes. O texto do deputado André Janones (PT-MG) reserva entre 10% e 15% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para ações de saúde mental com o intuito de prevenir o suicídio desses policiais.

Outro projeto que lei que prevê uso de recursos do FNSP é o PL 779/2024. No texto do senador Alberto Fraga (PL-DF), está prevista a criação da campanha Abril Branco, de combate à violência contra policiais. Entre as ações previstas no mês, estão debates sobre medidas de proteção, financiamento de campanhas com foco no treinamento tático das corporações e financiamento para compatibilidade de armamento e compra de equipamentos necessários à proteção dos policiais durante as atividades.

Uma das motivações para esse projeto foi o alto número de mortes de policiais civis e militares, que, entre 2016 e 2022, pode ter chegado a um policial morto a cada 39 horas.

A criação de um cadastro nacional de pedófilos também está entre os itens de um projeto que deve ser analisado no Senado. O PL 3.976/2020, do deputado Aluisio Mendes (Republicanos-MA), prevê que as informações de pessoas condenadas por crimes ligados à exploração sexual de crianças e adolescentes sejam divulgadas na internet. Um emenda incluída neste projeto prevê ainda a castração química dos condenados por pedofilia. 

Outros projetos ligados à segurança, como o que torna crime hediondo o homicídio cometido em razão da condição de idoso da vítima e o que prevê planos de defesa contra roubo de empresas de transporte de valores, também fazem parte do pacote da segurança aprovado em 2024, que deve ser retomado em votação agora pelo Senado. 

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O que Musk e Bezos querem no espaço?

Embora complementares, há diferenças entre os dois projetos. Bezos mira o mercado de satélites e o extrativismo extraterrestre de minérios. Já o dono da SpaceX, o escapismo: aceitar a ruína do planeta, construindo colônias orbitais ou em Marte

Nas páginas iniciais de A Parábola do Semeador (1993), Octavia E. Butler descreve um sonho onde a memória terrena e a imaginação cósmica se entrelaçam como luzes distantes compostas de estrelas e corpos celestes. O romance reflete os restos, compostos de recordações e símbolos, de um futuro possível mais esperançoso.

Lauren Olamina, a jovem protagonista que sofre de hiperempatia, encontra no firmamento uma centelha de esperança, quando a mudança climática global e as crises econômicas levam ao caos social na Califórnia, no início dos anos 2020. As estrelas, como espaços comuns e distantes, convertem-se em “refúgios imaginários” contra uma vida de abundância fora da Terra, que foi colonizada. No caos, a visão de Lauren transforma a vastidão cósmica em um lugar íntimo, em um respiro tangível onde o remoto e o possível se abraçam para criar uma nova fé, sobreviver e encontrar um novo destino humano.


Estamos em 2025. Os incêndios florestais na Califórnia arrasaram mais de 400.000 hectares, especialmente em áreas como Los Angeles e Camarillo, forçando milhares de pessoas a sair e destruindo comunidades inteiras. Até o momento, o número de mortos é de 25.

Paralelamente, na Flórida, Jeff Bezos lançou com sucesso o foguete New Glenn, conseguindo colocar um satélite em órbita, embora a tentativa de recuperar o propulsor principal tenha falhado. Este lançamento representa um marco na concorrência espacial comercial, na qual a Blue Origin busca se posicionar frente a empresas como a SpaceX, a companhia de Elon Musk que já domina o mercado com mais de 60 lançamentos bem-sucedidos no ano passado. Isto acontece apenas um dia após o foguete do magnata explodir sobre o Caribe, forçando as companhias aéreas a desviar seus aviões.

A corrida espacial contemporânea representa uma transformação em relação à concorrência entre países da Guerra Fria. Se no passado a exploração espacial estava articulada em torno do prestígio nacional e da segurança geopolítica, hoje, por um lado, configura-se como um vetor de acumulação capitalista e, por outro, como uma estratégia de enfraquecimento do Estado.

As infraestruturas privadas são fundamentais na expansão da batalha geopolítica para o espaço. Como destacou o caso das comunicações por satélite, cujo marco foi o sucesso da União Soviética em colocar em órbita o primeiro satélite, o Sputnik 1, em outubro de 1957, estas tecnologias nasceram no contexto de uma “Guerra Fria total” que subordinava amplos setores da sociedade aos imperativos da segurança nacional e do prestígio global.

Atualmente, os donos das infraestruturas monopolizam as vias de comunicação, favorecendo as lógicas da segurança nacional dos Estados Unidos, facilitando o novo colonialismo espacial e permitindo as lógicas da acumulação por desapropriação. O melhor exemplo de como esse “poder infraestrutural” opera é que Musk controla a empresa de fabricação espacial SpaceX, amplamente ligada ao Exército estadunidense, e ao mesmo tempo lançou a Starlink, uma contratada do Pentágono para criar a maior rede de vigilância do mundo, aliada da Ucrânia no conflito com a Rússia.

Bezos também não é apenas o dono do ramo de comutação na nuvem Amazon Web Services, que concentra um terço do tráfego da internet e dá suporte para a maioria das empresas do IBEX-35, mas também lançou uma empresa de transporte aeroespacial, a Blue Origin, que almeja oferecer voos suborbitais e orbitais, tanto para missões oficiais dos Estados Unidos quanto para voos privados.

SpaceX, especulando com o futuro

No entanto, as visões que os dois magnatas têm sobre a corrida espacial estão longe de ser semelhantes, embora possam ser complementares. Em primeiro lugar, personagens como Elon Musk buscam avançar na agenda libertária de destruição do Estado por meio de qualquer veículo possível. Para isso, desde 2016, defende que a humanidade deveria estabelecer colônias autossuficientes e politicamente independentes em Marte para garantir a sobrevivência da espécie humana quando a Terra for destruída.


A literatura acadêmica destacou que essa forma de mobilizar os imaginários coletivos, muitas vezes provenientes da ficção, faz parte de uma especulação sobre o futuro que pode ser entendida como “regimes de antecipação”, quando uma possibilidade imaginada e desejada é legitimada por meio de narrativas históricas deterministas, de progresso tecnológico e científico contínuo, construídas sobre uma nostalgia por épocas passadas de invenção e exploração. Mas o que buscam? No caso da SpaceX, isto implica assumir a inevitabilidade da ruína terrestre, enquanto mobiliza um poderoso discurso sobre os grandes homens que se dedicam à inovação científica em detrimento do Estado.

Embora os grandes homens da história e as empresas privadas ágeis e disruptivas sejam apresentados como os protagonistas heroicos e gloriosos, no fundo encontramos uma ideologia “pós-neoliberal” típica de figuras neorreacionárias. Assentada sobre a base de que é possível existir um complexo mosaico de pequenos e competitivos projetos para a criação de Estados de propriedade privada (“Gov-Corps”), comunidades autônomas fechadas, cidades-estado e, inclusive, comunidades “extraterrestres”, como propõe Musk, nas palavras da pesquisadora Alina Ulatra, almeja-se abandonar os estados territoriais existentes por meio da criação de comunidades soberanas em novos espaços. Entre os exemplos mais notáveis destacam-se a colonização do espaço, mas também a construção de plataformas flutuantes no oceano e os estados digitais na internet, conforme propôs Peter Thiel.

Até o momento, graças às mudanças introduzidas pelo governo Obama para favorecer empresas privadas como a Boeing, a SpaceX conseguiu se posicionar como uma destacada concorrente e impor sua visão de mundo às empresas aeroespaciais tradicionais no âmbito dos lançamentos orbitais de tripulação e carga nos Estados Unidos. A explicação pode ser encontrada em um elemento central da economia capitalista: custos mais baixos, lucros maiores e a acumulação de poder político. Os custos de lançamento da empresa de Musk são mais baixos que os dos rivais. Além disso, possui um orçamento bilionário para ações judiciais quando perde contratos públicos e exercícios de pressão política no Congresso dos Estados Unidos.

Até aqui, tentou influenciar nas negociações comerciais entre os Estados Unidos e a União Europeia, criticando o apoio que a Agência Espacial Europeia (ESA) e o governo francês oferecem à Arianespace, cuja série de foguetes Ariane compete diretamente com o Falcon 9 da SpaceX. Segundo pesquisas, antes a Arianespace e a Roscosmos dominavam aproximadamente 80% dos lançamentos comerciais. Agora, a SpaceX fica com cerca de 50 a 66% dos novos contratos neste setor. Sua capacidade de oferecer serviços de lançamento eficientes e sua constelação de satélites Starlink também levaram vários países a depender de suas tecnologias. Por exemplo, a União Europeia recorreu à SpaceX para lançar satélites Galileo, marcando a primeira colaboração deste tipo e refletindo a crescente influência da empresa na Europa. Em resumo, não só está redefinindo a exploração espacial, mas também remodelando as dinâmicas de poder entre nações e corporações no século XXI.

A economia extraterrestre da Blue Origin

Em relação a Jeff Bezos, o magnata imagina a criação de uma infraestrutura imperial por meio da construção de habitats artificiais que orbitariam a Terra e poderiam abrigar bilhões de pessoas, evitando a estagnação civilizacional e expandindo o capitalismo para as estrelas. Nas palavras do magnata, com a Blue Origin buscaria “construir um caminho para o espaço” e desencadear uma “nova indústria espacial” que possibilite aos empreendedores “criar uma empresa de seu dormitório”. Concretamente, a estratégia é criar operadores de satélite e suporte para o Pentágono que sejam mais baratos que os da SpaceX, graças à chamada “economia extraterrestre”, onde a fabricação e a mineração são feitas no espaço.

Como se fosse a premonição da protagonista do romance de Octavia E. Butler, alguns trabalhos acadêmicos críticos, como o da já citada Alina Ulatra, colocaram sobre a mesa que a ideia de Bezos de conquistar o espaço, a chamada “fronteira vazia”, assenta-se na mesma lógica de territorialização que justificou o colonialismo terrestre e a espoliação indígena. “A colonização espacial é apresentada como uma solução tecnológica para a crise climática, uma que não requer mudar os modelos subjacentes de crescimento extrativista do capitalismo colonial.” Dessa forma, o dono da Amazon acredita que sua infraestrutura permitirá que o capitalismo se expanda para o espaço, ao mesmo tempo em que preserva os ecossistemas terrestres.

Assim como acontece com os projetos imperiais na Terra, os observadores críticos alertam que existe o perigo de que, com a colonização do espaço, repitam-se os erros da colonização territorial da Ásia, Oceania, África e Américas. De fato, a historiadora Mary-Jane Rubenstein situa esse esforço em conquistar o espaço no marco de uma promessa de salvação quase religiosa: diante de um apocalipse iminente, alguns messias extremamente ricos oferecem uma fuga para outro mundo reservado a poucos eleitos. Afinal, os capitalistas tecnológicos não só impõem imaginários sociais e determinam o futuro através do fluxo de mercadorias. São as infraestruturas que sustentam essa utopia estúpida na qual o mercado é o único mecanismo para a nossa realização.

Até o momento, a única posição a esse respeito tem sido retificar a chegada de tecnomaquinaria incrivelmente cara em termos de consumo de energia e rezar para que as empresas do Vale do Silício se instalem em seus territórios. O problema é o seguinte: renunciar à autonomia política para escolher a direção do desenvolvimento tecnológico, seja na terra ou na lua, implica também abandonar outra série de questões fundamentais, como a capacidade de decidir sobre os ecossistemas naturais e combater os riscos provenientes da crise climática.

Os centros de dados como subterfúgio

Um dos espaços mais interessantes para observar são os Centros de Processamento de Dados. Graças a eles, a fibra óptica transcontinental e transoceânica se conecta aos milhares de roteadores e servidores, cada um deles ligado a centenas de outros cabos elétricos que representam outros quatrilhões, “uma quantidade insondável de informação”, como definia o primeiro jornalista do mundo a pesquisar as origens da infraestrutura física da internet global.

No território espanhol, a Amazon construiu um campus de três centros de dados, em Aragón, por meio da sua filial Amazon Web Services. Google e Microsoft abrirão novas regiões de nuvens em Madrid através da Telefónica. A IBM também construirá mais três centros de dados na capital, seu maior investimento na Espanha. Por sua vez, a Orange destinará investimentos no valor de 24 milhões para seus novos centros de dados na “Espanha periférica”, buscando tirar vantagem do baixo preço da terra. Recentemente, o Facebook (agora chamado Meta) anunciou a criação de quase 2.000 empregos para impulsionar o laboratório do metaverso em Madrid e um novo centro de dados em Castela-Mancha.

Em 2023, a entrada de novos atores no mercado de centros de dados na Espanha aumentou a faixa de potência de 200 para 500 MW. Tal capacidade é necessária para converter cada experiência da vida de uma pessoa em um cálculo matemático, quase sempre graças a modelos de inteligência artificial, orientados ao consumo de produtos financeiros e a aumentar consideravelmente as necessidades de extração de recursos naturais. Efetivamente, como mostram artigos acadêmicos, a maioria dos centros de dados requer um grande e contínuo fornecimento de água para gerenciar seus sistemas de resfriamento, o que levantou graves problemas políticos em lugares como os Estados Unidos, onde anos de seca assolaram as comunidades locais.

Em especial, como denunciam relatórios e investigações do Greenpeace, os centros de dados da Virgínia experimentaram um crescimento “espetacular” no uso de energia, atingindo cerca de 4,5 gigawatts, ou seja, a mesma potência de nove grandes centrais elétricas a carvão (cerca de 500 megawatts). O maior culpado, a Amazon Web Services (AWS), gasta 1,7 gigawatts em seus 55 centros de dados (em funcionamento ou construção), o que significou um aumento de 60% nos últimos dois anos. Devido aos avanços na computação em nuvem e ao crescimento do uso de serviços de internet, os centros de dados têm o maior crescimento na pegada de carbono de todo o setor das tecnologias digitais. De fato, segundo o Financial Times, em apenas três anos a Microsoft viu um aumento de 30% nas emissões de carbono.

Dado que o gasto de energia geral dos centros de dados chegará a um terço dos 20% do consumo mundial de energia gerado pelas tecnologias da informação, a Comissão Europeia assinou um acordo com a empresa Thales Alenia Space para estudar a viabilidade de colocar centros de dados em órbita espacial. Marte e a Lua serão os lugares que o programa ASCEND, dentro do programa de pesquisa Horizon Europe, inspecionará como espaços para colocar os centros de computação com o objetivo de reduzir a pegada de carbono. “Centros de dados são transferidos para o espaço para mitigar o consumo de energia e a poluição”, dizia uma manchete do El País, em 2022.

Em 2019, inclusive a Amazon patenteou uma rede de centros de dados distribuída geograficamente em um ambiente extraterritorial. Também um centro de dados lunar como parte de seu ramo de computação em nuvem, Amazon Web Services, que ficará localizado em Mare Tranquillitatis, uma bacia na Lua. Após explorar até o último espaço possível da Terra, e diante da nula disposição para mudar o modelo de crescimento econômico, uma missão de grandes corporações especializadas em infraestruturas espaciais buscará otimizar a arquitetura necessária para explorar os planetas vizinhos a um custo aceitável.

Essa colonização do espaço por meio de infraestruturas digitais define como funcionam os modelos extrativos das grandes empresas de tecnologia. Após tomar nossos vales, nossas montanhas e nossos oceanos, as empresas que gerem os centros de dados avançam em todos os tipos de futuros coloniais. Algumas estão mais focadas na computação espacial, como a empresa estadunidense OrbitsEdge. Outras, como a empresa japonesa Nippon Telegraph and Telephone, planejam lançar um centro de dados no espaço em 2025. Neste caso, o objetivo é processar localmente os dados dos satélites para transmitir apenas informações úteis selecionadas para a Terra, o que reduziria o tempo e o custo da transferência de grandes quantidades de dados.

Conforme a pesquisadora Yung Au, do Oxford Internet Institute, apontava em um trabalho acadêmico, o pensamento ocidental está estendendo seus imaginários coloniais em direção a esquemas sociais coletivos para projetar utopias de acordo com os planos macabros das grandes corporações tecnológicas. Estamos diante de “um futuro em que o universo é reivindicável, um futuro de céus geridos pela geoengenharia e um futuro em que os bens comuns globais, como a Lua, são repartidos de forma privada”. Estamos a tempo de propor alternativas, mas precisarão ser tão radicais quanto as propostas dos bilionários.

Precisamos de infraestruturas públicas para a comunicação, erradicar as lógicas de vigilância de seu funcionamento, acabar com as guerras e empreender uma corrida entre os países para desmercantilizar as tecnologias digitais. A esse respeito, talvez nos sirva contarmos outros tipos de histórias, como aquela em que as Nações Unidas tentaram aproveitar a promessa de paz para aumentar a cooperação científica e afastar o potencial bélico da Era Espacial por meio da adoção do Tratado do Espaço Exterior, o Acordo sobre o Resgate e o Retorno, a Convenção sobre Responsabilidade, a Convenção de Registro e o Acordo da Lua.

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Fim da escala 6×1 interessa à Enfermagem?

Dois projetos que tramitam no Congresso podem diminuir a jornada de trabalho da categoria – que muitas vezes trabalha em situações extenuantes. A luta será árdua, inclusive para desmentir falácia de que melhores condições causariam prejuízos à economia

    O início dos trabalhos legislativos no Congresso Nacional em fevereiro, terá dois projetos de grande interesse para os trabalhadores em geral e, especialmente, para os profissionais da Enfermagem.


A deputada Erika Hilton (Psol/SP) deverá apresentar na Câmara Federal a PEC que estabelece a duração do trabalho de até oito horas diárias e 36 semanais, com jornada de quatro dias por semana e três de descanso.

E no Senado tramita a PEC 19/2024, de autoria da senadora Eliziane Gama (PSD/MA) e relatada pelo senador Fabiano Contarato (PT/ES), que vincula o Piso Salarial Nacional da Enfermagem a uma jornada de 30 horas semanais.

Ambas as PECs tratam de criar melhores condições para que os trabalhadores possam ter vida além do trabalho. Com uma jornada diferenciada, muitas vezes em plantões intermináveis, alguns piores que a escala 6 x 1, profissionais de Enfermagem sofrem com as longas horas de trabalho sem descanso, correndo de um trabalho a outro, exaustos e doentes.

Já a maioria dos trabalhadores tem apenas um dia livre na semana; dia que acaba não sendo de descanso, pois ele é usado para cuidar da casa e resolver problemas que não são possíveis de tratar nos dias de trabalho. Portanto, o trabalhador não tem um dia sequer de descanso, de lazer, de convivência com a família. E isso não é vida.

Por isso, é importante que as duas PECs sejam discutidas e aprovadas. Elas têm o mérito de colocar as necessidades dos trabalhadores no centro do debate. Desde a reforma trabalhista de 2017, passando pelo governo Bolsonaro, os trabalhadores só tiveram perdas; quem tem carteira assinada, trabalha muito e ganha pouco; uma grande parcela, por outro lado, está no trabalho informal, em tese faz seu próprio horário, mas na prática trabalha todos os dias, uberizado, precarizado e sem mais direitos.

Será necessária uma longa luta. Para se contrapor a ambas as PECs, os empresários e grandes conglomerados argumentam que ao virar lei, elas causariam prejuízos à economia — argumento já comprovado falso.

Entidades como a Confederação Nacional do Comércio e Confederação Nacional da Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) agem para manter condições de trabalho semelhantes à escravidão, com um mínimo de direitos, o máximo de exploração e os lucros sempre maiores.

A CNSaúde foi ao STF para dizer que o setor privado quebraria se pagasse o Piso da Enfermagem. Argumento aceito pelo Supremo, que suspendeu o pagamento do Piso, mas desmentido pelos números.

Considerando os dados acumulados dos três primeiros trimestres de 2024, as informações financeiras enviadas pelas operadoras de planos de saúde e pelas administradoras de benefícios à ANS demonstram que o setor registrou lucro líquido de R$ 8,7 bilhões de janeiro a setembro de 2024 e um aumento de 178% em relação ao mesmo período de 2023.


Do mesmo modo, quem se contrapõe a uma jornada de trabalho menor e mais humana também é desmentido pelos dados. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), países com jornadas mais curtas aumentam a eficiência e a satisfação dos trabalhadores, assim como as experiências realizadas em vários países ao redor do mundo.

As jornadas exaustivas são das principais causas de problemas físicos e mentais dos trabalhadores. A redução de jornada eleva a qualidade de vida, reduz a incidência de doenças como o estresse e o burnout e gera bem-estar social. Estes benefícios se estendem para o conjunto da sociedade, em todos os setores, desde a educação até a saúde; profissionais satisfeitos prestam melhores serviços. Além disso, com a redução do cansaço e das doenças dele decorrentes, os serviços públicos de saúde serão desafogados.

Começamos 2025 e temos pelo que lutar. Por uma vida digna para o conjunto da classe trabalhadora. Isso é muito mais do que uma simples diminuição das horas trabalhadas.

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A América do Sul à beira do futuro

Desarticulado e dividido em blocos, continente permanece periférico no sistema internacional. Até seu comércio interno é pífio. Superar esta condição é possível – mas exige outra postura do Brasil, em meio ao boicote explícito de Trump

    Às vezes de forma mais lenta, às vezes mais acelerada, algumas mudanças vêm acontecendo no panorama geopolítico e geoeconômico da América do Sul. Em alguns casos, reforçando velhos caminhos e “vocações” do continente; em outros, abrindo novas perspectivas e oportunidades que poderão ou não ser aproveitadas pelos 12 países que convivem lado a lado dentro desse território recortado por tantas barreiras geográficas, e tão próximo dos Estados Unidos. Destacamos em seguida quatro mudanças que deverão pesar decisivamente sobre o futuro continental:


I) O aumento da assimetria sul-americana

Em 1950, os dois países mais ricos da América do Sul – Brasil e Argentina – tinham mais ou menos o mesmo PIB, apesar de que os argentinos tivessem uma renda per capita, homogeneidade social, nível educacional e qualidade de vida extraordinariamente superiores em relação aos brasileiros. Hoje, setenta anos depois, a situação mudou radicalmente: se o PIB dos dois países girava em torno de US$ 80 bilhões em 1950, 70 anos depois, o PIB brasileiro multiplicou 23 vezes e é hoje de cerca de US$ 2,17 trilhões, enquanto o argentino multiplicou-se apenas oito vezes no mesmo período, sendo hoje de 640 bilhões de dólares. Uma assimetria entre os dois países que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos, e muito mais ainda entre o Brasil e os demais países sul-americanos. Hoje, o Brasil já possui metade da população e do produto sul-americano, e é o único país da região que tem alguma presença no tabuleiro geopolítico internacional.

Depois do Golpe de Estado de 2016, entretanto, e até 2022, dois sucessivos governos de direita alteraram radicalmente a política externa, afastando o Brasil de todas as iniciativas integracionistas na América do Sul, ao mesmo tempo que se alinhava aos Estados Unidos e à OTAN, frente aos conflitos internacionais fora do continente. Em 2023, entretanto, o país retomou o rumo anterior de sua política externa e vem assumindo posições cada vez mais ativas no campo internacional, no grupo do BRICS, na presidência rotativa do G20 e na liderança mundial da luta pela sustentabilidade e controle das mudanças climáticas. No seu próprio continente, entretanto, o Brasil vem encontrando grandes resistências, que muito têm a ver com o aumento da assimetria regional, em que o Brasil aparece hoje como uma espécie de “elefante no meio da sala”.

ii) A expansão da presença chinesa

A segunda grande transformação da América do Sul, nas primeiras décadas do século XXI, foram o surgimento e a expansão acelerada do papel da China no desenvolvimento econômico do continente. Em apenas três décadas, o fluxo comercial entre América do Sul e China cresceu de US$ 15 bilhões em 2001, para cerca de US$ 300 bilhões em 2019. E o fluxo dos investimentos diretos chineses na região cresceu e se manteve em torno de US$ 10 bilhões anuais, em média, entre 2011 e 2018. Brasil, Peru e Argentina receberam a maior parcela desses investimentos até 2022, ficando o Brasil com 22% deste total, incluindo a fabricação de veículos elétricos, aquisição de ativos de lítio, expansão da Huawei e de outras empresas chinesas de data centers, computação em nuvem e tecnologia 5G, e em grande quantidade de infraestrutura elétrica.

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a China também dobrou sua participação nas importações realizadas pelos países sul-americanos, cujo valor bruto cresceu mais de 700%, enquanto as exportações brasileiras para a América do Sul, por exemplo, no mesmo período, cresceram menos de 40% do crescimento chinês. Mesmo durante a crise econômica de 2008, a participação brasileira no mercado argentino recuou de 42% para 31,5%, enquanto a participação chinesa subiu de 21,5% para 30,5%. E o mesmo aconteceu na Venezuela, onde a participação chinesa subiu de 4,4% em 2008, para 11,5% nos quatro primeiros meses de 2009.

Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru na América do Sul, e está entre os três maiores parceiros comerciais de todos os países do continente. Só no caso brasileiro, 30,6% de suas exportações em 2023 foram para a China, que foi ao mesmo tempo o maior fornecedor de bens importados pelo Brasil. E oito países sul-americanos já fazem parte da iniciativa da Belt and Road chinesa: Argentina, Peru, Bolívia, Chile, Guiana, Suriname, Uruguai e Venezuela.


Na linguagem estruturalista clássica, pode-se afirmar que nesse período a China se transformou no novo “centro cíclico principal” da economia sul-americana. E hoje, como no passado, o principal interesse dos chineses na América do Sul segue sendo seus recursos naturais e minerais, apesar de também estarem participando das grandes licitações governamentais da região. E o cenário para os próximos anos promete uma oferta excedente de produtos e capitais chineses, que deve derrubar barreiras e constituir um imenso desafio competitivo para os capitais norte-americanos e brasileiros.

iii) A nova estratégia norte-americana de “polarização mundial”

A terceira grande mudança aconteceu no campo das relações da América do Sul com os Estados Unidos, que nunca abandonaram sua Doutrina Monroe, formulada em 1823 com o objetivo de combater e expulsar a influência europeia do continente sul-americano. A diferença é que, no século XIX, esse discurso era contrário aos interesses das potências coloniais europeias, e favorável à independência de suas colônias sul-americanas. Na primeira metade do século XX, entretanto, a mesma doutrina legitimou a intervenção norte-americana na América Central e Caribe, para mudar governos e regimes que eles consideravam contrários aos seus interesses. E na segunda metade do século, ela voltou a ser utilizada para “proteger” os países da América do Sul, só que agora contra a “ameaça comunista”, que justificou o apoio norte-americano a uma sucessão de golpes e regimes militares que liquidaram a democracia no continente, destruindo ao mesmo tempo sua soberania e seus projetos autônomos de futuro.

No início do século XXI, durante a sua “guerra global ao terrorismo”, os Estados Unidos reduziram seu grau de envolvimento político com os assuntos sul-americanos. Um “déficit de atenção” que durou até o “desembarque” econômico dos chineses na América do Sul na segunda década do século, e até o início do conflito entre os Estados Unidos e a Rússia, na Ucrânia, após o golpe de Estado de 2014.

Desde então, os Estados Unidos vêm se propondo “repolarizar o mundo” no estilo da Guerra Fria do século XX, de maneira que os demais países do sistema internacional, e também da América do Sul, teriam que se posicionar de um lado ou de outro da “linha vermelha” estabelecida por eles e seus aliado europeus.

iv) O declínio do projeto de integração sul-americano

A maioria dos países sul-americanos superou o impacto da crise de 2008 mais rapidamente do que no resto do mundo, graças à grande demanda de seus produtos de exportação por parte das economias asiáticas, da China em particular, que sustentaram as quantidades e os preços das commodities sul-americanas num nível extremamente elevado. Mas este sucesso de curto prazo provocou um efeito inesperado em toda a América do Sul, ao aprofundar, de forma paradoxal, as velhas dificuldades enfrentadas desde sempre pelo projeto de integração econômica da América do Sul. Basta dizer que, na América do Norte, o comércio intrarregional é da ordem de 40% do seu comércio global; na Ásia, de 58%; e na Europa, de 68%; enquanto na América do Sul, mal chega aos 18%.1

Os caminhos do futuro

Dividida em blocos, e com a maior parte dos países separados ou distantes do Brasil, por conta do contencioso venezuelano, a América do Sul deverá se manter na sua condição tradicional de periferia econômica do sistema internacional, mesmo diversificando e ampliando seus mercados na direção da Ásia. Para não ser assim, o Brasil terá que assumir a “liderança material” do continente, construindo uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e “energia limpa”. Neste caso, o Brasil poderá mudar o rumo da região, transformando-se na sua “locomotiva econômica”, por cima das divergências políticas e ideológicas que hoje dividem e imobilizam um continente que – sem o Brasil – não tem a menor relevância geopolítica dentro do Sistema Mundial.

Neste ponto, entretanto, não há como enganar-se: o Brasil enfrentará nos próximos anos uma concorrência acirrada e um boicote explicito do governo de Donald Trump que considera que a única relevância da América do Sul é pertencer ao “quintal dos Estados Unidos”.

1 “O Brasil ainda está de costas para a América do Sul e isso precisa mudar”. Entrevista da ministra brasileira do Planejamento, Simone Tebet, Brasil 247, 6 de setembro de 2024.


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Guerras Culturais e a ilusão da Política sem Cultura

Elas não se resumem a um embate de ideias: são o campo onde a direita constroi as bases para sua hegemonia – e disputa o Estado. O método é interditar os debates e mobilizar por meio do pânico moral. As esquerdas erram ao tratar a Cultura como algo secundário…

    Muitos enxergam a guerra cultural – termo popularizado para descrever disputas ideológicas que se manifestam em valores, costumes e narrativas sociais -, como algo superficial, um truque, uma distração que desvia a atenção da sociedade das chamadas “questões reais” — econômicas e institucionais. Contudo, essa perspectiva chega com um vício subjacente: subestima o papel central da cultura na disputa pelo poder. A cultura nunca foi um detalhe: ela estrutura os valores de uma sociedade, delimita o que é aceitável e enquadra o que deve ser combatido. Em toda disputa política, a cultura é o ponto de partida e o terreno onde as percepções de realidade são definidas, elaboradas, reelaboradas e questionadas.

A guerra cultural não se resume a um embate de ideias; ela é um método projetado para desarticular o debate público. Seu objetivo não é persuadir pelo argumento, mas transformar discordâncias em ameaças existenciais. Nesse contexto, a identidade ocupa o lugar do pensamento crítico, e o ódio substitui a argumentação. Nada disso ocorre por acaso: trata-se de uma estratégia deliberada, que prospera na radicalização e na simplificação dos problemas, inviabilizando qualquer possibilidade de mediação.

Mais do que um ruído periférico da política, a guerra cultural é um mecanismo cuidadosamente estruturado para reorganizar o poder. Grupos conservadores compreenderam que a cultura não é apenas uma expressão da sociedade, mas um campo ativo de disputa, onde significados são produzidos, valores negociados e relações de poder naturalizadas. Ao deslocarem suas batalhas das urnas e dos tribunais para o campo cultural, trataram a cultura como um território estratégico para consolidar hegemonias e reconfigurar a percepção pública.


Compreender esse fenômeno exige ir além da superfície das manchetes ou dos embates cotidianos. É necessário investigar suas raízes históricas, seus métodos e suas estratégias para revelar como a guerra cultural transforma as prioridades políticas e reconfigura o próprio exercício do poder. Somente com essa compreensão será possível construir respostas que ultrapassem o imediatismo e enfrentem a centralidade da cultura no jogo político. Vamos tentar.

A tradição das Guerras Culturais

As disputas culturais atravessam os séculos, assumindo diferentes formas e intensidades, mas sempre refletindo os embates mais profundos de uma sociedade. Embora o termo “guerra cultural” pareça recente, suas raízes remontam a momentos históricos muito anteriores à sua formalização como conceito sociológico. No século XIX, por exemplo, a Alemanha vivenciou o Kulturkampf, um conflito entre o Estado prussiano e a Igreja Católica pelo controle da educação, da moral e da identidade nacional. Essa disputa demonstrou que a cultura não é apenas um reflexo passivo da sociedade, mas um campo dinâmico de poder e conflito.

O Kulturkampf evidenciou que, desde o século XIX, a cultura já era tratada como um espaço central de poder. Essa lógica foi intensificada nos Estados Unidos, especialmente a partir dos anos 1960. O avanço dos direitos civis, do feminismo e da contracultura foi percebido por setores conservadores como uma ameaça à estabilidade da ordem social. Em resposta, estruturou-se uma ofensiva moral que não apenas resistia às transformações sociais, mas buscava ativamente reverter os avanços conquistados.

Nos anos 1990, o sociólogo James Davison Hunter consolidou a noção de guerra cultural em sua obra Culture Wars: The Struggle to Define America. Inserido em uma tradição sociológica que explora as transformações culturais como arenas de disputa política e de poder, Hunter argumentou que a guerra cultural não era apenas um embate ideológico, mas uma luta entre visões de mundo incompatíveis. Ele demonstrou como esses conflitos moldavam legislações, direcionavam o sistema educacional e influenciavam decisões judiciais, transformando a cultura em um campo estratégico para redefinir hegemonias.

Andrew Hartman, em A War for the Soul of America, deu continuidade a essa análise ao situar os conflitos culturais dos anos 2010 como parte de um ciclo histórico contínuo de disputas ideológicas nos Estados Unidos. Hartman destacou que, ao deslocar o foco para questões de moralidade e costumes, as guerras culturais funcionavam como mecanismos para obscurecer crises estruturais mais amplas, como as do modelo econômico, permitindo que hegemonias conservadoras em declínio encontrassem novas bases de sustentação. Essa tradição sociológica, especialmente influente nos Estados Unidos, se desenvolveu em um contexto marcado pela pluralidade de valores em uma sociedade multicultural e pelas crescentes divisões políticas e ideológicas.

Wendy Brown, em Undoing the Demos, argumenta que o neoliberalismo não apenas reconfigura economias, mas também transforma profundamente a cultura e a política, submetendo-as à lógica do mercado. Nesse cenário, as guerras culturais desempenham um papel estratégico: ao mobilizar pautas identitárias e morais, muitas vezes urgentes e legítimas, o neoliberalismo desloca o debate público de questões estruturais, como desigualdades econômicas, para conflitos culturais que fragmentam solidariedades coletivas. Essas disputas não são desvios do projeto neoliberal, mas parte integrante de sua dinâmica, pois enfraquecem a organização de resistências e criam um ambiente em que o individualismo e a competição prevalecem. Assim, as guerras culturais não apenas refletem conflitos ideológicos, mas também operam como mecanismos que reforçam as desigualdades e limitam as possibilidades de transformação social.

Enquanto nos Estados Unidos as guerras culturais emergiram como reação a transformações sociais e à crise da hegemonia conservadora, no Brasil elas foram concebidas deliberadamente como estratégia política. Como destaca João Cezar de Castro Rocha em sua obra Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político, a guerra cultural brasileira não emergiu espontaneamente, mas foi estruturada como uma ferramenta de mobilização de setores conservadores. Seu objetivo era reconfigurar o debate público, deslocando-o para temas culturais e morais, como forma de consolidar um projeto de poder. Dessa forma, a guerra cultural no Brasil tornou-se um instrumento central para deslocar o debate público e minar a construção de uma sociedade democrática, ao instrumentalizar questões morais como ferramentas de controle político.


A disputa cultural no Brasil: construção e estratégias

Nos Estados Unidos, a guerra cultural emergiu como uma reação aos avanços dos direitos civis e das pautas progressistas, marcando um momento de crise para hegemonias conservadoras. No Brasil, no entanto, essa dinâmica não foi apenas uma adaptação local do fenômeno norte-americano. Seu surgimento deve ser entendido no contexto das transformações políticas, sociais e econômicas que se intensificaram a partir da primeira década do século XXI, marcadas pela polarização ideológica e pela crise de legitimidade das instituições democráticas.

Com o avanço das redes sociais e o impacto global de movimentos conservadores, setores da direita brasileira passaram a adotar estratégias de guerra cultural para reorientar o debate público e criar inimigos internos. Além disso, o desgaste do sistema político tradicional, agravado pelos protestos de 2013 e pela Operação Lava Jato, forneceu o terreno fértil para a emergência de narrativas que deslocavam o foco das questões estruturais para disputas culturais e morais. Nesse cenário, como aponta Castro Rocha em seu Guerra Cultural e Retórica do Ódio, consolidou-se um movimento coordenado para transformar a guerra cultural em uma estratégia deliberada de poder, voltada a minar instituições de conhecimento e fortalecer uma hegemonia conservadora.

Olavo de Carvalho (1947–2022) tornou-se uma figura central na articulação da guerra cultural no Brasil, especialmente a partir dos anos 2000. Inicialmente conhecido nos círculos intelectuais conservadores como ensaísta e crítico da modernidade, Olavo ganhou maior projeção pública com a ascensão das redes sociais e o fortalecimento de movimentos de direita. Nos anos 1990, seus textos já abordavam temas como a crítica ao marxismo cultural, mas foi na década seguinte, com o uso massivo do YouTube e a disseminação de suas ideias em comunidades digitais, que se consolidou como o principal ideólogo da nova direita brasileira.

Seu discurso, profundamente anti-intelectualista e conspiracionista, rejeitava a academia tradicional, que acusava de estar dominada por uma “hegemonia marxista”. Inspirado por autores conservadores como Roger Scruton e Eric Voegelin, Olavo desenvolveu uma narrativa que combinava referências filosóficas e religiosas para atacar as bases do pensamento progressista. Seus escritos e vídeos serviram como ponto de encontro ideológico para grupos conservadores, apresentando professores, jornalistas e artistas como agentes de uma suposta revolução cultural de esquerda. Esse discurso foi instrumental para moldar o imaginário de uma nova geração de lideranças políticas e militantes digitais.

O impacto desse discurso foi amplificado por estruturas digitais sofisticadas. Isabela Kalil, em O Ódio como Política: A Reinvenção das Direitas no Brasil, destaca como a segmentação comunicacional foi usada de forma estratégica, combinando microtargeting digital e discursos inflamados contra supostos “inimigos internos”. Redes sociais como WhatsApp, Facebook e YouTube desempenharam um papel central ao mobilizar diferentes grupos — de militares e religiosos a empresários — em torno de narrativas comuns.

Outro elemento central nesse cenário foi a produção audiovisual revisionista, que teve na produtora Brasil Paralelo, fundada em 2016, um de seus principais pilares. Seus conteúdos reinterpretam a história brasileira sob uma perspectiva conservadora e conspiracionista, frequentemente simplificando debates complexos para reforçar uma narrativa alinhada à guerra cultural. Como destacam Salgado e Jorge, no artigo publicado na Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, essa estratégia não apenas descredibiliza instituições como a mídia e a academia, mas também busca moldar a memória coletiva em torno de versões distorcidas do passado, como no documentário 1964: O Brasil entre armas e livros, que minimiza os crimes da ditadura militar.

Essa estratégia também incluiu uma revisão da memória nacional sobre a ditadura militar. Rodrigo Patto Sá Motta, em A Construção da Verdade Autoritária: A Ditadura Militar Brasileira e a Formação da Memória Social, analisa como essas narrativas revisionistas ressignificaram o regime, promovendo uma visão segundo a qual os militares “salvaram” o país do comunismo. Essa reinterpretação tornou-se dominante em determinados círculos conservadores, contribuindo para a reabilitação simbólica do regime e de figuras como Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Apesar de a moralidade ocupar um lugar central nesse processo, Frederico Rios observa em Neoliberalismo como Tragédia e Farsa: Crônicas da Guerra Cultural no Brasil que a guerra cultural brasileira não se limitou a questões religiosas ou de costumes. Ela também incorporou um forte viés econômico e corporativo, com empresários e grupos de mídia conservadores investindo na construção de narrativas que vinculam o “livre mercado” à modernização do país, enquanto demonizam movimentos sociais e acadêmicos como inimigos da sociedade.

A guerra cultural no Brasil avançou não apenas pela força do discurso conservador, mas também pela ausência de uma estratégia articulada por parte dos setores progressistas. Como Antonio Gramsci aponta em Cadernos do Cárcere, o poder não se mantém apenas pelo controle do Estado, mas também pela ocupação de espaços culturais e pelo convencimento das massas. A direita compreendeu essa lógica e investiu maciçamente em redes sociais, influenciadores digitais e plataformas audiovisuais, enquanto a esquerda concentrou suas energias na política institucional.

A virada digital da guerra cultural transformou o embate político ao favorecer discursos polarizados e conspiratórios. Plataformas como YouTube e Twitter fortaleceram bolhas informativas que alimentam ressentimentos e criam inimigos fictícios, sequestrando o debate público com narrativas simplificadas. Nesse ambiente, qualquer discordância é tratada como uma ameaça existencial.

Enfrentar a guerra cultural exige mais do que reações pontuais ou denúncias das estratégias da direita. É necessário compreender a cultura como um terreno central de disputa, onde valores e símbolos moldam o imaginário coletivo e a percepção da realidade. Apenas uma estratégia propositiva e de longo prazo, que combine ação política e ocupação cultural, será capaz de reverter os avanços dessa hegemonia conservadora e criar novas possibilidades para um debate público mais democrático.

A cultura como território de disputa

A cultura sempre foi um campo central de embate político, estruturando valores, identidades e percepções de poder. No debate público, ela é frequentemente relegada a um papel periférico, tratada como um reflexo das relações econômicas ou como mera expressão simbólica, sem impacto estrutural. Essa visão desconsidera que é na cultura que os significados são gerados, as relações de poder se tornam naturais e as subjetividades políticas são construídas.

A guerra cultural não criou essa dinâmica — apenas evidenciou sua raiz estrutural. Raymond Williams, em Marxism and Literature, demonstrou que a cultura não é um reflexo passivo das estruturas sociais, mas um espaço onde as ideologias disputam hegemonia. Com seu conceito de Materialismo Cultural, Williams rompeu com a visão tradicional de que a cultura seria apenas um subproduto da economia, mostrando como ela organiza a experiência vivida e orienta o que pode ser legitimado ou excluído. Essa perspectiva foi enriquecida pelo historiador E. P. Thompson, em sua obra clássica A Formação da Classe Operária Inglesa, na qual revelou que as classes sociais não emergem apenas das condições materiais, mas também da forma como experiências históricas e narrativas coletivas conferem sentido à identidade política.

Stuart Hall, em textos como The Hard Road to Renewal: Thatcherism and the Crisis of the Left, dialogou com essas ideias ao explorar como a hegemonia é construída através do consenso cultural antes de se consolidar no poder institucional. Para Hall, quando uma ideia se torna senso comum, significa que a batalha cultural já foi vencida, mesmo sem mudanças explícitas nas estruturas políticas. Essa interação entre o simbólico e o estrutural torna a cultura não apenas um reflexo, mas um campo de contestação e transformação, onde as visões de mundo são negociadas e naturalizadas.

Compreender a centralidade da cultura na disputa pelo poder exige considerar sua relação com as estruturas de controle e legitimidade. É nesse ponto que as ideias de Antonio Gramsci se tornam fundamentais. Gramsci, ao tratar da hegemonia em seus Cadernos do Cárcere, destacou que o poder não se sustenta apenas pela coerção estatal, mas pelo convencimento. Esse convencimento ocorre principalmente no campo cultural, onde valores e crenças são internalizados e naturalizados, tornando-se aparentemente neutros e incontestáveis.

Essa lógica é visível no Brasil contemporâneo, onde a guerra cultural reorganiza os marcos da legitimidade, redefine quais discursos são aceitáveis e desloca o debate público para questões conservadoras que consolidam novas hegemonias. A disputa pela hegemonia cultural pode ser observada na reinterpretação da história nacional, na reabilitação simbólica da ditadura militar e no embate sobre o papel da educação na formação crítica dos cidadãos. O que está em jogo não é apenas o controle de narrativas, mas a construção de uma visão de mundo dominante que configura o imaginário político.

O problema, então, não é que a guerra cultural tenha esvaziado a cultura como campo de disputa — ao contrário, ela a tornou ainda mais central, mas sob a lógica da direita. Enquanto a esquerda concentrou seus esforços na política institucional e econômica, a direita investiu na cultura como espaço estratégico, compreendendo que é ali que se consolidam valores, se reorientam percepções e se estabelecem os limites do que pode ou não ser contestado. Ao transformar a guerra cultural em uma estratégia de hegemonia, a direita redirecionou o debate público para suas pautas, consolidando sua agenda sem depender exclusivamente de vitórias eleitorais.

A virada digital da guerra cultural amplificou ainda mais seu alcance e alterou profundamente seu funcionamento. Com as redes sociais, a guerra cultural deixou de depender dos veículos tradicionais e passou a operar em ciclos de viralização instantânea. O engajamento algorítmico favorece discursos polarizados, transformando indignação em capital político. No Brasil, a guerra cultural digital consolidou-se com a ascensão de influenciadores políticos e o uso massivo de fake news para manipular narrativas e mobilizar eleitores.

A cultura não é um elemento acessório na luta política; ela é o campo onde se constroem as bases da hegemonia. Quem controla a cultura não apenas domina narrativas, mas define os limites do possível, orienta valores e molda a percepção da realidade. Enfrentar a guerra cultural, portanto, exige mais do que reação ou denúncia: é necessário um esforço estratégico e de longo prazo que trate a cultura como o principal território de disputa política. Apenas ao disputar a cultura de forma propositiva e estruturada será possível reverter a hegemonia conservadora e resgatar a capacidade de a cultura funcionar como uma ferramenta crítica, capaz de ampliar os horizontes do debate público e transformar a sociedade.

Conclusão

A guerra cultural não é um desvio da política real, mas uma de suas formas mais sofisticadas de disputa pelo poder. Ela opera no longo prazo, reconfigurando percepções, deslocando os termos do debate público e redefinindo o que é socialmente aceitável ou inaceitável. Enquanto a direita utilizou esse mecanismo para consolidar sua influência, a esquerda demorou a reconhecer a cultura como um território central na luta política.

O resultado é um cenário onde o debate público foi capturado por discursos que naturalizam desigualdades, reforçam hierarquias e deslegitimam o pensamento crítico. Nesse ambiente, toda oposição é transformada em inimiga e todo questionamento, em ameaça. O apelo moral, frequentemente mobilizado, não se apresenta apenas como uma justificativa conservadora, mas como um recurso eficaz para interditar debates, deslocar o foco de questões estruturais e fortalecer narrativas reacionárias. A guerra cultural não se limita ao enfrentamento direto de ideias políticas; ela transforma valores e comportamentos em campos de batalha permanentes, onde o que está em disputa não é apenas a argumentação, mas os próprios limites do que pode ser imaginado, dito e aceito na sociedade.

Se a guerra cultural consegue deslocar a política para onde lhe convém, enfrentá-la exige mais do que reações pontuais ou denúncias. É necessário ocupar o campo cultural de maneira propositiva e estrutural, disputando valores, símbolos e espaços de influência. Isso demanda pensar a longo prazo, evitando o imediatismo que apenas responde às condições impostas pela própria guerra cultural.

A força da guerra cultural não reside apenas no que ela impõe, mas no que ela torna invisível ou impensável. Ela não precisa censurar ideias diretamente — basta torná-las irrelevantes, ridículas ou impossíveis de serem levadas a sério. Seu impacto não se mede apenas pelo que é dito, mas também pelo que é silenciado.

A política não acontece exclusivamente no parlamento ou nas urnas. Ela se constrói na cultura, nos afetos, nas memórias e na forma como as pessoas percebem o mundo ao seu redor. Como a hegemonia se consolida na cultura, qualquer resistência efetiva deve emergir a partir dela. O erro da esquerda foi tratar a cultura como algo secundário, permitindo que a direita ocupasse esse espaço estratégico.

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Saúde mental: para enfrentar os agravantes climáticos

Dizer que a crise climática causa sofrimento não basta – ou poderíamos “resolver” a questão com mais drogas psiquiátricas. Há alternativa: combater a desigualdade, que agrava eventos extremos, será decisivo para uma resposta coletiva ao problema


Nos últimos anos, a saúde mental se tornou cada vez mais prioritária na agenda de governos e sociedades, incluindo no Brasil. Contudo, esse processo não acontece sem percalços. Proliferaram-se também as discussões rasas e as interpretações mercadológicas sobre o sofrimento psíquico. Elas muitas vezes predominam na busca de possíveis respostas – individuais ou coletivas – que podem ser implementadas em nossa realidade, em especial nas formas do cuidado. Buscando contribuir com as discussões em profundidade no âmbito da saúde mental, Outra Saúde apresenta com alegria aos leitores sua nova coluna. Por ela, será responsável Claudia Braga, professora do curso de Terapia Ocupacional da USP, ex-consultora de saúde mental da OPAS e coordenadora do grupo Saúde Mental Global – Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Drogas e Desinstitucionalização. Todas as terceiras quintas-feiras do mês, este boletim veiculará instigantes reflexões como a que se segue, em que Claudia aborda os atuais desafios da saúde mental à luz da crise climática. Boa leitura! (G. A.)

Ocorrendo até esta sexta-feira (22/11) em Baku, no Azerbaijão, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2024 (COP 29) é um momento decisivo para avançar em acordos e compromissos para frear os impactos das mudanças climáticas e atender às necessidades dos países mais vulneráveis a elas. Dos muitos impactos que as mudanças climáticas provocam (e que vêm sendo agravados pela tragédia política geral), é considerável o impacto sobre o bem-estar – o que exige novas respostas dos sistemas de saúde, em especial para a saúde mental. A questão é: quais respostas temos que construir também nesse campo?

Responder essa pergunta exige que, primeiro, a gente reflita sobre outra questão: como cuidamos da saúde mental? O que nos leva a uma terceira (e mais importante) pergunta: em que termos estamos definindo o que é saúde mental? É a partir de certo entendimento sobre o que é saúde mental e o que promove saúde mental que vamos responder com mais ou menos qualidade ao problema das mudanças climáticas. 

As mudanças climáticas são uma realidade de enormes consequências na vida das comunidades, como vimos nas inundações no Rio Grande do Sul e na seca da Amazônia. Esforços internacionais, ainda insuficientes, têm sido empreendidos para reverter esse cenário e seus impactos, principalmente na saúde, segurança alimentar e habitação, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU) vem afirmando. Sobre a saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) assinala que as consequências climáticas estão entre as maiores ameaças à saúde global, incluindo à saúde mental. 

Nesse contexto, na 77ª Assembleia Mundial de Saúde realizada em junho de 2024, foi aprovada a resolução sobre Mudanças Climáticas e Saúde, que aponta: “Eventos e condições climáticas extremas cada vez mais frequentes estão tendo um impacto crescente no bem-estar, nos meios de subsistência e na saúde física e mental das pessoas, bem como ameaçando os sistemas de saúde e as instalações de saúde”. A necessidade de agir está posta.

Uma abordagem individualizada será eficaz

Há duas principais linhas de ação se constituindo para uma abordagem de saúde mental no contexto das mudanças climáticas.

A primeira dessas linhas parte da ideia de que as mudanças climáticas intensificam fatores de risco para problemas de saúde mental, e podem levar ao desenvolvimento de problemas de saúde mental e ao agravamento daqueles já existentes. Ou seja, as mudanças climáticas, somadas a experiências de vulnerabilidade e problemas ambientais e econômicos, podem levar ao tensionamento das relações sociais, sentimentos de medo e tristeza, e experiências entendidas como estresse, ansiedade e depressão. 

É nessa linha que temos observado emergirem novos conceitos para descrever sentimentos pessoais e coletivos relativos às mudanças climáticas, como eco-ansiedade (ou ansiedade climática) e solastalgia. A compreensão aqui é que as mudanças climáticas podem causar sofrimento, vivido como problema de saúde mental pelas pessoas, e que muitas vezes ganha o nome de um diagnóstico psiquiátrico, esteja ele consolidado e ou em invenção. Daí, suas respostas se centram na oferta de cuidados de saúde mental com abordagens mais ou menos individualizadas.

Pensar a resposta às mudanças climáticas a partir do coletivo

Por sua vez, a segunda linha parte da constatação de que mudanças climáticas tornam mais frequentes emergências relacionadas a eventos climáticos extremos, com impactos que afetam a vida em geral, incluindo a saúde mental das pessoas. 


Aqui, a resposta consiste em integrar o componente da saúde mental nas respostas ampliadas ao problema da emergência climática. As ações possíveis incluem estruturação e disponibilização de serviços em vários níveis, mobilização de suporte comunitário e apoio social, oferta de primeiros cuidados em saúde mental para sofrimento agudo, fortalecimento dos cuidados de saúde mental ofertados nos sistemas de saúde, proteção e promoção dos direitos das pessoas com problemas de saúde mental graves, e construção de fluxos e mecanismos de encaminhamentos entre serviços baseados na comunidade, incluindo os de assistência emergencial que fornecem comida, água e abrigo. 

Nesse caso, a compreensão é que as mudanças climáticas provocam emergências climáticas em grande escala, sendo preciso responder à situação de emergência em sua complexidade. Daí a abordagem focada na organização de sistemas e estruturas de gestão, incluindo oferta de cuidado, em uma resposta de saúde pública integrada às necessidades gerais das pessoas e comunidades, sendo a saúde mental uma das dimensões da vida que é inteiramente impactada

É inegável que alguns grupos populacionais estão mais em risco do que outros no contexto das mudanças climáticas, dependendo das vulnerabilidades e desigualdades existentes. No último relatório do The Lancet Countdown, Marina Romanello e colegas constatam que, “embora nenhuma região não seja afetada, as populações mais vulneráveis ​​e minoritárias, que muitas vezes contribuíram menos para as mudanças climáticas, são desproporcionalmente afetadas”.

Isso, elas argumentam, é “uma consequência direta de injustiças estruturais e dinâmicas de poder prejudiciais, tanto entre os países quanto dentro deles”.

Enfrentar as iniquidades sociais para promover saúde mental

Em outubro de 2024, foi apresentado na Assembleia Geral das Nações Unidas um novo relatório do Relator Especial para Pobreza e Direitos Humanos da ONU, que trata da relação entre pobreza e saúde mental. O relatório sustenta com base em estudos que há uma relação significativa entre situação de maior pobreza e experiência de problemas de saúde mental. Isso se dá não exatamente pela renda mais baixa – mas porque, em razão da desigualdade e insegurança econômica pela diferença de renda, as pessoas de baixa renda vivem estresses constantes e condições de vida desfavoráveis. 

Fatores como insegurança alimentar, moradia precária e vulnerabilidade a conflitos e violência também são listados como catalisadores de problemas de saúde mental. Afinal, são problemas na vida das pessoas. Ou seja, o contexto de vida impacta a saúde mental – algo óbvio, mas que segue sendo negligenciado nas respostas aos problemas de saúde mental, incluindo no cenário de mudanças climáticas, mesmo com a relação entre saúde mental e determinantes sociais sendo há tempos estabelecida.

É  preciso lembrar que a experiência de sofrimento se dá nos cenários da vida cotidiana e nas relações. Portanto, a resposta em saúde mental – com foco nos indivíduos ou na organização de sistemas – precisa partir do reconhecimento das possibilidades que são ofertadas às pessoas e comunidades e o que é vivido por elas. Se alguém tem ou não moradia adequada, trabalho e renda seguros e relações de suporte de qualidade, sua experiência do impacto das mudanças climáticas muda radicalmente. E se isso é determinante da experiência, é nisso que as políticas públicas e legislações precisam incidir. 

Reconhecer isso é necessário para romper com uma visão restrita de causa-efeito de mudanças climáticas e sofrimento individual – que tantas vezes é reduzido ao nome de estresse, ansiedade e depressão, e produz frágeis respostas focadas em terapia e medicalização que não alteram os fatores que determinam sofrimentos. 

Mesmo considerando o que tem se denominado de ecoansiedade, uma espécie de preocupação em relação às mudanças climáticas, não é preciso muito para concluir que é mais eficaz construir políticas e leis sérias de proteção ambiental e de preparação de sistemas para lidar com mudanças climáticas. Promover a experiência de segurança e amparo a partir do conhecimento de que se tem moradia adequada, rede de suporte e trabalho assegurado – essa abordagem vai muito mais longe do que ofertar formas individuais de terapias para lidar com o sofrimento das pessoas.

Uma abordagem de saúde mental na resposta às mudanças climáticas requer – como requer qualquer abordagem de saúde mental – produzir respostas às desigualdades sociais.

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